Livre Exame das Escrituras: Entre a Autonomia Hermenêutica e os Abusos da Interpretação Bíblica no Brasil
1. Introdução
A Reforma Protestante do século XVI consolidou um princípio que viria a redefinir a relação do fiel com as Escrituras: o livre exame bíblico. Rompendo com o modelo hierárquico da interpretação exclusiva do magistério eclesiástico — predominante na tradição católica romana —, reformadores como Martinho Lutero e João Calvino propuseram que a Palavra de Deus deveria ser acessível a todos os crentes, em sua própria língua, permitindo que cada indivíduo pudesse, com seriedade e formação, examiná-la e interpretá-la.
Contudo, é importante reconhecer que esse anseio por uma relação mais direta com os textos sagrados não surgiu de forma abrupta com Lutero. Erasmo de Roterdã, humanista e teólogo do século XV, foi um dos primeiros a defender a necessidade de que as Escrituras estivessem disponíveis em língua vernácula, para que mesmo o "lavrador no campo" pudesse conhecê-las. Ao publicar, em 1516, uma edição crítica do Novo Testamento em grego com tradução latina e anotações filológicas, Erasmo lançou as bases textuais que possibilitariam o avanço da Reforma. Sua proposta era clara: retornar às fontes (ad fontes), libertar a leitura bíblica da dependência exclusiva do clero e resgatar a simplicidade do cristianismo primitivo.
Para os reformadores, interpretar a Bíblia exigia não apenas domínio da gramática, da história e das línguas originais, mas também temor — não no sentido de medo irracional, mas como uma postura reverente diante do sagrado. Interpretar a Escritura era, antes de tudo, um ato de humildade e responsabilidade diante de um texto que não se esgota em leituras apressadas, nem se submete a interesses individuais. A liberdade hermenêutica, nesse sentido, exigia disciplina teológica, consciência eclesiástica e discernimento espiritual.
No entanto, no cenário contemporâneo — especialmente no Brasil, sob forte influência do neopentecostalismo — o princípio reformado do livre exame tem sido amplamente deturpado. Igrejas e líderes neopentecostais frequentemente se apropriam da Bíblia não como Palavra que confronta e liberta, mas como um repositório simbólico que pode ser manipulado conforme as demandas do consumo religioso. Multiplicam-se interpretações alegóricas e descontextualizadas, que distorcem os significados originais do texto para justificar curas mágicas, campanhas de prosperidade financeira e pactos econômicos com Deus. Versículos são transformados em slogans de marketing espiritual, desvinculados da teologia bíblica e de sua tessitura histórica.
A chamada teologia da prosperidade, nesse sentido, representa o ápice dessa desconstrução: transforma a Escritura em contrato de interesses materiais, converte Deus em um investidor, e o fiel em um cliente espiritual. Textos como “Darei cem vezes mais” ou “O Senhor é meu pastor, nada me faltará” são arrancados de seus contextos, reinterpretados por meio de traduções frágeis ou parafraseadas (como a NTLH), e apresentados como promessas incondicionais de riqueza, saúde e sucesso pessoal. Essa operação simbólica, como diria Pierre Bourdieu, faz parte da economia das trocas simbólicas: um sistema no qual a manipulação do sagrado legitima posições de poder, autoridade e influência econômica.
Neste artigo, propomos um resgate crítico do princípio do livre exame das Escrituras, com base na tradição reformada e em uma hermenêutica teológica responsável. Para isso, abordaremos, inicialmente, os fundamentos exegéticos e hermenêuticos clássicos, especialmente a partir de Schleiermacher e Gadamer, mostrando como a interpretação exige método, abertura e consciência histórica. Em seguida, analisaremos o uso contemporâneo da Bíblia em contextos neopentecostais e o impacto teológico, político e social dessa leitura. Finalizamos propondo caminhos para um retorno à seriedade interpretativa, com liberdade, mas sem negligência, e com fé, mas sem fetichismo.
2. O que é Exegese Bíblica? Fundamentos, Métodos e Aplicações
A exegese bíblica é a disciplina teológica que busca interpretar o texto sagrado com base em critérios técnicos, históricos e linguísticos. Diferente de uma leitura devocional ou moralizante, a exegese parte do princípio de que o sentido original do texto deve ser respeitado antes que sejam feitas aplicações contemporâneas.
Do grego exēgéomai, que significa “explicar” ou “interpretar”, a exegese implica um esforço de escavação textual: entender a gramática original, o contexto social, político, religioso e literário da época em que o texto foi escrito. Isso evita que o leitor imponha sua própria cultura e visão de mundo ao texto — erro comum nas leituras alegóricas infundadas que criticamos neste artigo.
2.1 O Método do Laboratório de Teologia
No Laboratório de Teologia, adotamos uma abordagem exegética que respeita:
- O texto original em suas línguas bíblicas (hebraico, aramaico, grego koiné);
- O contexto histórico-social da redação e recepção do texto;
- As intenções teológicas subjacentes a cada livro ou autor bíblico;
- As tradições interpretativas que se consolidaram ao longo da história da Igreja, sem abdicar da crítica histórica.
Essa abordagem evita leituras rasas, moralistas ou utilitaristas, favorecendo uma compreensão mais honesta e transformadora do texto.
2.2 Bibliolatria e a Crítica de Leonardo Boff
Em sua crítica ao fundamentalismo protestante brasileiro, Leonardo Boff acusa esse movimento de incorrer em bibliolatria: a adoração da Bíblia como objeto, em detrimento de sua mensagem libertadora. Segundo ele, esse movimento teria transformado o texto bíblico em uma “coleção de versículos mágicos”, usados fora de contexto para legitimar discursos morais, políticos ou financeiros.
Essa crítica ganha força especialmente quando observamos o uso literalista das Escrituras em muitas igrejas evangélicas, que leem traduções como a NTLH (Nova Tradução na Linguagem de Hoje) como se fossem o texto original. Tal prática compromete o sentido real das Escrituras e abre espaço para interpretações fantasiosas ou manipuladoras.
2.3 A Exegese e a Reforma Protestante
Na Reforma do século XVI, figuras como Martinho Lutero e João Calvino defenderam o acesso direto às Escrituras, desafiando a mediação eclesiástica da Igreja Católica. Essa defesa estava ligada à ideia de que todo cristão, com auxílio do Espírito Santo, poderia compreender o texto. Porém, essa liberdade sempre foi pensada dentro de limites: os reformadores exigiam competência linguística, formação teológica e coerência doutrinária.
Além disso, autores como Erasmo de Roterdã já haviam defendido, antes mesmo de Lutero, a importância de voltar aos textos originais (ad fontes), criando as bases para uma leitura mais crítica e cuidadosa das Escrituras.
2.4 Contra o Neopentecostalismo: Teologia da Prosperidade e Leitura Alegórica
O neopentecostalismo brasileiro representa uma ruptura com a tradição exegética protestante. Aqui, a Bíblia é frequentemente usada como instrumento de legitimação de desejos terrenos, sobretudo financeiros. A chamada teologia da prosperidade desvirtua passagens bíblicas para transformá-las em promessas mágicas de sucesso, riqueza e saúde.
Essa prática não apenas viola os princípios exegéticos, mas também insere o texto sagrado numa lógica mercantil, como bem analisa Pierre Bourdieu em sua teoria da economia das trocas simbólicas. O fiel oferece fé, dinheiro e obediência, esperando em troca bênçãos materiais — um sistema de trocas espirituais condicionado por interpretações manipuladas do texto bíblico.
3. Hermenêutica Teológica: Entre Schleiermacher e Gadamer
A hermenêutica teológica é a arte e a ciência da interpretação dos textos sagrados. Mas mais do que um método técnico, ela é uma postura diante da revelação, uma disposição intelectual e espiritual que reconhece que todo texto — e sobretudo os textos da fé — carregam uma densidade simbólica, histórica e existencial que exige do intérprete muito mais que boa vontade: exige rigor, consciência crítica e abertura ao outro.
Essa consciência hermenêutica é essencial para o nosso tempo. Em um cenário eclesial marcado por interpretações subjetivistas, usos oportunistas da Bíblia e polarizações ideológicas que instrumentalizam o texto sagrado, o retorno a uma hermenêutica sólida e honesta se faz urgente. E é nesse contexto que a complementaridade entre dois grandes pensadores — Friedrich Schleiermacher e Hans-Georg Gadamer — se mostra particularmente fecunda para o trabalho teológico.
3.1 Schleiermacher e a Interpretação como Reconstrução Metódica
Friedrich Schleiermacher (1768–1834) é considerado o “pai da hermenêutica moderna”. Sua contribuição consiste em sistematizar a hermenêutica como disciplina geral, válida para qualquer texto, e não apenas para os textos bíblicos ou jurídicos, como era comum até então.
Para Schleiermacher, interpretar é compreender o autor melhor do que ele mesmo se compreendia. Isso exige um esforço duplo:
- Interpretação gramatical, que busca entender o sentido objetivo do texto conforme a estrutura da linguagem;
- Interpretação psicológica, que procura reconstruir o mundo interior do autor, suas intenções e contexto subjetivo.
Schleiermacher oferece ao teólogo uma base segura: a necessidade de respeitar a alteridade do texto, submetendo-se metodologicamente a ele antes de extrair qualquer sentido prático ou doutrinário.
Ele inaugura, assim, uma hermenêutica da escuta, em que a primeira tarefa do teólogo é calar sua própria voz para ouvir o texto. Numa era em que tantos pastores e pregadores falam mais do que escutam o texto bíblico, esse gesto epistemológico é revolucionário.
3.2 Gadamer e a Interpretação como Diálogo
Hans-Georg Gadamer (1900–2002), por sua vez, rompe com a pretensão de neutralidade da hermenêutica iluminista. Em sua obra “Verdade e Método”, Gadamer afirma que compreender é sempre um ato situado historicamente, um processo dialógico em que o intérprete traz consigo pré-compreensões, tradições e horizontes que inevitavelmente moldam sua leitura.
Seu conceito-chave é o da fusão de horizontes: a interpretação é o encontro entre o horizonte do texto (sua época, seus pressupostos, sua cosmovisão) e o horizonte do leitor (sua cultura, seu tempo, suas expectativas).
Gadamer resgata o valor do preconceito (no sentido técnico, não pejorativo) como ponto de partida inevitável. O intérprete nunca chega “em branco” ao texto, mas precisa tomar consciência de seus próprios filtros para não absolutizá-los. A hermenêutica, para ele, é um processo aberto, contínuo, transformador.
Esse pensamento é profundamente teológico: Gadamer nos lembra que não controlamos o texto, não o possuímos — somos, na verdade, por ele interpelados.
3.3 Uma Complementaridade Estratégica para o Teólogo
Um teólogo comprometido com a verdade do texto pode, sim, iniciar com a abordagem sistemática de Schleiermacher e, com base nesse alicerce metodológico, integrar os elementos dialógicos de Gadamer. Essa não é uma contradição, mas uma progressão lógica e epistemológica:
- Schleiermacher ensina o teólogo a ler com rigor, evitando anacronismos e subjetivismos.
- Gadamer desafia o teólogo a reconhecer que, mesmo com todo o rigor, sua leitura nunca será absoluta ou final, pois todo ato de compreensão é também um ato de escuta e abertura ao outro.
Essa integração permite que a teologia escape tanto do tecnicismo árido quanto da alegorização irresponsável. Um exemplo disso é a forma como algumas correntes neopentecostais desconsideram por completo o contexto original das Escrituras e fazem uso livre, alegórico e muitas vezes mágico de textos bíblicos.
Ao adotar a dupla abordagem, o teólogo pode, por exemplo:
- Fazer uma leitura exegética e histórica de João 10:10 (“Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância”), compreendendo seu sentido original no contexto joanino.
- Em seguida, refletir hermeneuticamente sobre o que significa “vida em abundância” hoje, em um mundo marcado por desigualdades, hiperconsumo e crises existenciais.
Esse processo impede tanto a leitura literalista (que ignora a realidade do leitor) quanto a leitura subjetivista (que ignora a realidade do texto). A teologia ganha, assim, em profundidade, honestidade e relevância.
3.4 Implicações Pastorais e Eclesiais
Essa hermenêutica tem implicações práticas profundas:
- Na pregação, impede o uso irresponsável de versículos soltos para reforçar narrativas pessoais ou ideológicas.
- Na formação bíblica, forma leitores mais críticos e conscientes.
- Na espiritualidade, convida à humildade: interpretar é sempre um exercício de escuta e autocrítica, não de imposição.
4. O Livre Exame: Entre a Autonomia do Leitor e os Limites do Texto
4.1 Raízes Históricas: Da Reforma à Autonomia Hermenêutica
O conceito de livre exame das Escrituras se origina no cerne da Reforma Protestante do século XVI. Foi uma das pedras angulares do rompimento com a autoridade magisterial da Igreja Católica. Para Martinho Lutero, ao defender o princípio da sola scriptura, o crente, com fé e razão, poderia compreender o conteúdo bíblico sem a necessidade de mediação clerical.
No entanto, antes mesmo de Lutero, Erasmo de Roterdã já havia lançado as bases dessa ideia. Em 1516, publicou o Novo Testamento em grego, promovendo o retorno às fontes originais (ad fontes) para corrigir erros acumulados pelas tradições doutrinárias. Seu objetivo não era apenas filológico, mas teológico e pastoral: tornar a Escritura acessível a todos — camponeses, mulheres, crianças — como parte de um projeto humanista cristão que unisse fé e razão.
Com Lutero e Calvino, o livre exame passou a ter um contorno doutrinário mais sólido. A liberdade interpretativa, no entanto, não era anárquica. Lutero afirmava que Cristo era a chave de leitura da Escritura (was Christum treibet), enquanto Calvino invocava a ação do Espírito Santo como guia da compreensão bíblica. Havia, portanto, critérios reguladores internos à própria teologia reformada, que delimitavam a autonomia do intérprete.
4.2 A Crítica de Leonardo Boff: Da Sola Scriptura à Bibliolatria
Na teologia contemporânea, o princípio do livre exame foi criticado por autores como Leonardo Boff, que cunhou o termo "bibliolatria" para se referir a determinadas posturas dentro do protestantismo brasileiro — especialmente nas correntes fundamentalistas e neopentecostais.
Boff inverte a crítica comum dos protestantes aos católicos: se os primeiros acusam os segundos de idolatria (imagens, santos, relíquias), os protestantes, ao absolutizarem o texto bíblico como oráculo inquestionável, caem na idolatria do próprio livro. A Bíblia se torna, então, um “objeto sagrado” descolado da realidade histórica de sua produção e de seu contexto linguístico.
Essa “adoração do livro” transforma o texto em sistema fechado, incapaz de dialogar com a experiência humana, com a crítica histórica ou com outras racionalidades. No contexto brasileiro, esse fenômeno se agrava pelo uso da Bíblia como manual de autoajuda, código de promessas materiais ou justificativa teológica para o sucesso econômico, como ocorre na teologia da prosperidade.
4.3 Livre Interpretação Não é Leitura Arbitrária
É necessário afirmar, com clareza e sem ambiguidade: livre interpretação não é leitura arbitrária. A autonomia do leitor não equivale à relativização do texto. A interpretação legítima demanda o reconhecimento de que a Bíblia:
- foi escrita em línguas originais específicas (hebraico, aramaico e grego koiné);
- emerge de contextos históricos, políticos e teológicos que lhe são próprios;
- carrega marcas de debates internos ao antigo Israel, à comunidade joanina, paulina, lucana, entre outras.
Ignorar esses aspectos é transformar o texto sagrado em projeção das próprias paixões, desejos e interesses — o que frequentemente ocorre no neopentecostalismo brasileiro, em que versículos são isolados, descontextualizados e usados como garantias mágicas de bênçãos materiais.
É sintomático, por exemplo, o uso recorrente de 3 João 2 (“desejo que tenhas saúde e prosperidade”) como suporte doutrinário para a teologia da prosperidade. Tal leitura ignora completamente o gênero epistolar, o contexto da saudação e o uso comum de fórmulas de cortesia nas cartas antigas. Trata-se de uma exegese falaciosa, funcionalizada pela retórica do lucro religioso.
Além disso, essas leituras costumam se apoiar em traduções bíblicas parafrásticas, como a NTLH (Nova Tradução na Linguagem de Hoje), cuja simplicidade linguística favorece interpretações moralistas e doutrinárias superficiais, distanciando o leitor da densidade teológica e histórica do texto.
4.4 A Economia Simbólica da Leitura Bíblica
Neste ponto, é fundamental recorrer à teoria de Pierre Bourdieu e sua noção de economia das trocas simbólicas. Para o sociólogo francês, o campo religioso opera por meio de estruturas próprias de capital simbólico — como autoridade, santidade, legitimidade teológica.
Nesse sistema, quem detém o poder de interpretar as Escrituras exerce também poder sobre as consciências. O controle hermenêutico se torna mecanismo de manutenção de autoridade religiosa. A Bíblia, nesse contexto, passa a ser mercadoria simbólica, utilizada para:
- justificar transferências financeiras em nome da fé;
- impor comandos morais indisputáveis;
- reforçar slogans como “tá na Bíblia!” que, embora apelativos, esvaziam qualquer esforço exegético ou hermenêutico real.
Assim, o princípio da livre interpretação é distorcido em liberdade de manipulação. Não se trata mais de buscar o sentido do texto com rigor e humildade, mas de usá-lo como instrumento de convencimento e consumo espiritual.
4.5 Liberdade Responsável e Crítica Hermenêutica
A livre interpretação das Escrituras permanece como um princípio válido, urgente e inegociável para qualquer tradição que valorize o acesso popular à fé. No entanto, essa liberdade só pode ser exercida com responsabilidade — e isso requer preparo, crítica e reverência ao texto como expressão histórico-social complexa.
O intérprete bíblico contemporâneo precisa cultivar:
- preparação técnica, com domínio das línguas originais e ferramentas exegéticas;
- humildade epistemológica, ciente de suas limitações históricas e culturais;
- fidelidade ao contexto original, recusando anacronismos e instrumentalizações;
- abertura à alteridade, reconhecendo que o texto não pertence apenas ao leitor, mas é também fruto de uma comunidade de fé e de séculos de tradição.
O desafio hermenêutico de hoje — especialmente no contexto brasileiro — é formar sujeitos leitores que não absolutizem o texto como objeto mágico nem o reduzam a slogan de mercado religioso. A Bíblia continua sendo fonte inesgotável de sentido e confrontação, mas apenas quando lida com liberdade crítica, atenção histórica e disposição para o desconforto teológico que ela frequentemente provoca.
5. Implicações Teológicas, Políticas e Sociais da Hermenêutica Protestante
5.1 A Teologia da Liberdade: A Escritura como Espaço de Resistência
O livre exame das Escrituras, ao romper com o monopólio interpretativo da hierarquia eclesiástica, gerou não apenas uma nova forma de espiritualidade, mas também um novo horizonte de responsabilidade. A Bíblia deixa de ser um instrumento da autoridade clerical para tornar-se um espaço aberto de resistência teológica e social. Tal liberdade interpretativa não significa anarquia hermenêutica, mas sim a abertura para múltiplas vozes — inclusive as vozes silenciadas pela tradição dominante.
Essa mudança de paradigma permitiu o surgimento de movimentos teológicos que desafiam estruturas de dominação. Por exemplo, as teologias da libertação, desenvolvidas na América Latina, fazem uso do método hermenêutico popular para reler os textos bíblicos a partir da realidade dos pobres e oprimidos. A leitura da Bíblia, neste caso, torna-se um ato de denúncia contra sistemas opressivos e um anúncio de alternativas fundadas na justiça.
5.2 A Responsabilidade Hermenêutica do Sujeito Leitor
Com a liberdade vem a responsabilidade. A interpretação não pode ser vista como mera expressão da subjetividade ou da vontade do leitor. O sujeito hermenêutico precisa se formar — técnica e eticamente — para lidar com o texto bíblico de maneira honesta e crítica.
Essa exigência traz implicações diretas para os espaços eclesiais. O culto público, a pregação, o ensino religioso e a teologia pastoral precisam assumir o compromisso com a formação de leitores críticos. É preciso ir além da memorização de versículos e oferecer ferramentas que permitam aos fiéis compreender os textos em sua complexidade.
Nesse sentido, a hermenêutica protestante, quando exercida com responsabilidade, promove o empoderamento dos sujeitos de fé, tornando-os agentes ativos na construção de significados e não meros receptores de doutrinas preestabelecidas.
5.3 A Subversão do Sagrado: A Palavra Contra os Poderes
A leitura crítica da Bíblia tem implicações políticas. A partir do momento em que o texto é interpretado como um lugar de conflito — entre opressores e oprimidos, entre poder e profecia, entre dominação e libertação — a hermenêutica se torna uma prática subversiva.
Foi assim no uso que Martin Luther King Jr. fez da Escritura, ao reinterpretar textos proféticos em favor do movimento dos direitos civis. É assim nas comunidades quilombolas e ribeirinhas, que leem o Êxodo como símbolo da luta contra o extermínio e o apagamento cultural. A Bíblia, nesses contextos, torna-se arma simbólica contra a morte e a opressão.
O teólogo Milton Schwantz, ao refletir sobre a função social da religião, insiste que a Bíblia deve ser lida como instrumento de libertação e não como código de manutenção da ordem. Sua perspectiva dialoga com a crítica feita por Pierre Bourdieu: quando o texto bíblico é controlado pelas instâncias dominantes, ele tende a reforçar o status quo, mas quando devolvido ao povo, pode ser dinamite interpretativa.
5.4 A Ruptura com a Interpretação Alienante
A tradição exegética que o Laboratório de Teologia propõe assume como tarefa a ruptura com leituras alienantes da Bíblia. Isso significa rejeitar tanto a leitura mágica e literalista — que esvazia o texto de sua historicidade — quanto a alegorização anárquica que atribui significados arbitrários, muitas vezes descolados do texto original.
Aqui, autores como Carlos Mesters e Fábio Py Murta de Almeida são essenciais, pois propõem uma leitura popular da Bíblia que não abandona o rigor, mas o democratiza. O objetivo não é substituir os especialistas, mas formar comunidades capazes de pensar a fé com profundidade e relevância.
5.5 Hermenêutica e Transformação Social
Por fim, toda hermenêutica protestante que reivindica o livre exame deve reconhecer sua vocação pública. A leitura da Bíblia não se limita ao interior da igreja. Ela se expande para os debates sobre justiça, equidade, meio ambiente, saúde pública, políticas sociais e direitos humanos.
Karen Armstrong, ao tratar das religiões como expressões de compaixão e justiça, lembra que o uso político da religião pode tanto legitimar a barbárie quanto promover a dignidade. A hermenêutica bíblica, quando orientada por princípios éticos e sociais, torna-se um instrumento de transformação coletiva.
6. Conclusão: O Livre Exame Contra a Deformação da Fé
6.1 Entre Letra, Espírito e Poder
O princípio do livre exame das Escrituras, legado da Reforma, é mais do que uma afirmação da autonomia do leitor — ele é uma convocação ética à leitura responsável, crítica e comprometida com a verdade do texto. Esse princípio, que nasceu como uma ruptura contra o monopólio da interpretação eclesiástica, vem sendo, paradoxalmente, esvaziado e corrompido por estruturas religiosas contemporâneas que o invocam apenas para justificar arbitrariedades e interesses de poder.
A hermenêutica responsável não é concessão à subjetividade desmedida nem à espiritualidade mágica. É um ato de resistência. E em tempos de banalização do texto sagrado, torna-se também um ato profético.
6.2 O Colapso Hermenêutico da Fé Neopentecostal Brasileira
Vivemos, no Brasil, um dos períodos mais obscuros da história da fé cristã no que diz respeito à interpretação bíblica. O que se apresenta, em muitas comunidades, como "livre exame", é, de fato, uma licença hermenêutica para a ignorância, para a manipulação emocional e para a exploração econômica dos fiéis.
- Teologia da prosperidade: reduz o Evangelho a um contrato de troca por bens materiais;
- Teologia da autoajuda: esvazia os textos de suas implicações sociais, convertendo-os em slogans motivacionais;
- Midiatização do sagrado: substitui o púlpito pela performance eclesiástica, onde unção é confundida com carisma de palco;
- Discurso religioso-coaching: trocando a cruz por técnicas de sucesso e autossuperação espiritual.
Essas distorções são expressões estruturadas de dominação simbólica. Utilizando o conceito de economia das trocas simbólicas de Pierre Bourdieu, compreendemos que o campo religioso converte o capital espiritual em capital econômico e político, enquanto a Bíblia torna-se instrumento de legitimação de poder.
6.3 A Reação Teológica: Uma Nova Reforma É Urgente
Não é possível permanecer em silêncio diante desse colapso hermenêutico. A teologia precisa reagir. O Laboratório de Teologia propõe uma resposta pastoral, profética e pública.
Propomos:
- Sistematização da formação hermenêutica comunitária;
- Resgate das línguas originais e leituras histórico-sociais como ferramentas acessíveis;
- Denúncia teológica pública contra a mercantilização da fé.
6.4 A Bíblia Como Lugar de Disputa: O Texto e o Seu Uso
Toda Escritura é, inevitavelmente, um lugar de disputa: entre o que ela foi, o que ela diz, o que representa e o que dela se faz. Como ensinava Leonardo Boff, o protestantismo brasileiro — sobretudo o fundamentalista — substituiu o altar dos santos pelo pedestal da Bíblia, criando uma bibliolatria dogmática.
O texto bíblico deve ser espaço de encontro e confronto. Espaço de escuta — não de imposição. De liberdade — não de opressão. De mistério — não de fórmula.
6.5 Convite Final: Uma Fé que Pensa, Uma Leitura que Liberta
O Laboratório de Teologia não busca fé cega, mas fé lúcida. Uma leitura que liberta — não que domina. Nossa missão é formar intérpretes críticos, atentos à pluralidade de sentidos, comprometidos com a justiça, e capazes de recusar tanto o fundamentalismo quanto a indiferença.
Porque uma Bíblia lida com coragem pode ser, ainda hoje, uma semente de revolução.

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