Entenda a parábola do administrador injusto: Exegese de Lucas 16:1–14

A ASTÚCIA DO INJUSTO

Fidelidade, Poder e Dinheiro no Evangelho segundo Lucas (16:1–14)


Introdução autoral

Este texto nasceu de um pedido de um amigo querido — Jonathan, teólogo, pedagogo e historiador — para refletirmos juntos sobre um dos trechos mais desafiadores e intrigantes dos Evangelhos: a parábola do administrador injusto.

Lucas 16:1–14 apresenta um enredo desconcertante. Jesus parece elogiar a astúcia de um administrador infiel, que, ao ser demitido, usa da esperteza para garantir seu futuro. À primeira vista, o texto parece premiar a corrupção ou justificar práticas desonestas.

Mas seria isso mesmo?

Aqui, propomos uma leitura histórico-social crítica, que busca entender o funcionamento econômico do mundo romano, o contexto das comunidades lucanas e as tensões entre ética, poder e sobrevivência.


I. Estrutura narrativa do texto: divisão e motivações

O trecho de Lucas 16:1–14 pode ser dividido assim:

  • Versos 1–8a: Parábola do administrador injusto (núcleo narrativo).
  • Versos 8b–13: Aplicações éticas e teológicas feitas por Jesus à comunidade.
  • Verso 14: Reação dos fariseus.

Por que esta divisão?

A primeira parte (1–8a) forma uma unidade narrativa tradicional: enredo com tensão, resolução e comentário final ("O senhor elogiou o administrador injusto pela sua astúcia").

A segunda parte (8b–13) contém ditos sapienciais desconectados diretamente do enredo (sobre fidelidade no pouco e muito, sobre servir a Deus ou ao dinheiro), indicando uma provável adaptação/redação feita pela comunidade lucana.

O verso 14 já introduz a tensão com os fariseus — preparando a próxima seção do Evangelho.


II. Texto original e análise lexical

καὶ ἐπῄνεσεν ὁ κύριος τὸν οἰκονόμον τῆς ἀδικίας ὅτι φρονίμως ἐποίησεν.
kai epēinesen ho kyrios ton oikonomon tēs adikias hoti phronimōs epoiēsen.

Tradução literal: “E o senhor elogiou o administrador da injustiça porque agiu com astúcia.”

Vocabulário chave:

  • οἰκονόμος (oikonomos): administrador, mordomo — responsável pela gestão de bens alheios.
  • ἀδικία (adikia): injustiça, desonestidade — usada para descrever o comportamento do administrador.
  • φρονίμως (phronimōs): com prudência, astúcia, sabedoria prática.

O elogio é pela φρόνησις — sabedoria prática, capacidade de agir inteligentemente em situações adversas.


III. Contexto histórico-social: Dinheiro, Astúcia e Sobrevivência no Império Romano

Nos tempos de Jesus e Lucas, o sistema econômico era extremamente desigual. Administradores eram intermediários, que cobravam arrendamentos e juros sobre camponeses pobres.

Era comum que:

  • Inflacionassem as dívidas, cobrando além do devido para lucro próprio.
  • Vivessem de comissões sobre o que arrecadavam.

Ao reduzir as dívidas, o administrador não rouba o patrão — renuncia à sua margem de lucro.

Essa interpretação é sustentada por Richard Rohrbaugh e Bruce Malina (2003), que descrevem as práticas econômicas romanas baseadas em clientelismo e sobrecarga de juros.


IV. A sabedoria da astúcia: sabedoria do oprimido

Quando Jesus elogia a astúcia, reconhece uma sabedoria subversiva:

  • O administrador entende que não sobreviverá pela força ou pela pureza.
  • Sobrevive pela inteligência relacional, tecendo alianças futuras.

“A astúcia torna-se aqui sabedoria de sobrevivência no meio da opressão.”
(Scott, 1990, p. 144)


V. Fidelidade e Dinheiro: Lições sapienciais (vv. 8b–13)

Após a parábola, surgem ditos que expandem a reflexão:

  • Ser fiel no pouco é ser fiel no muito.
  • Não se pode servir a dois senhores: Deus e Mamom.

Esses ditos:

  • Alertam para a corrupção estrutural do dinheiro.
  • Reafirmam que a fidelidade a Deus exige discernimento ético no cotidiano.

“O dinheiro não é negado em si mesmo, mas sua absolutização como valor é criticada com radicalidade.”
(Tillich, 1951, p. 74)


VI. Tensões hermenêuticas: elogio ou crítica?

O texto mantém a tensão:

  • Elogia a astúcia prática.
  • Critica a absolutização do dinheiro como fim último.

Essa tensão reflete debates internos nas comunidades cristãs sobre recursos, ética e resistência ao império.


VII. Conclusão: fidelidade na astúcia e sabedoria no serviço

A parábola desafia nossas categorias fáceis de certo e errado.

Jesus reconhece que, num mundo injusto, às vezes a fidelidade exige:

  • Criatividade.
  • Renúncia estratégica.
  • Astúcia relacional.

Não se trata de legitimar a corrupção, mas de construir relações justas e sobreviver sem idolatrar Mamom.

Que saibamos ser fiéis no pouco.
Astutos na esperança.
E prontos para reconhecer, no meio do colapso, o chamado do Reino.


Referências bibliográficas

  • BAUCKHAM, Richard. The Theology of the Book of Revelation. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
  • MALINA, Bruce; ROHRBAUGH, Richard. Social-Science Commentary on the Synoptic Gospels. Minneapolis: Fortress Press, 2003.
  • SCOTT, James C. Dominação e as Artes da Resistência: Disfarces do Discurso Subordinado. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • TILLICH, Paul. Teologia Sistemática, Volume 2. São Paulo: Fonte Editorial, 1951.
  • GREEN, Joel B. The Gospel of Luke. Grand Rapids: Eerdmans, 1997.
  • BOVON, François. Luke 2: A Commentary on the Gospel of Luke 9:51–19:27. Minneapolis: Fortress Press, 2006.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Entre Getsêmani e o Gólgota: a Caveira, a Fé e a Urgência de um Cristianismo Adulto

Livre Exame das Escrituras: Entre a Autonomia Hermenêutica e os Abusos da Interpretação Bíblica no Brasil

Falsos Profetas, Teologia da Prosperidade e o Mercado da Fé no Brasil: Exegese de 2 Pedro 2:1-3