O que impede reconhecer Jesus? Exegese crítico-social de Lucas 24:16
Quando não se reconhece o Cristo
Uma leitura crítico-social de Lucas 24:16
Exórdio
No culto pascal da comunidade luterana que tenho frequentado, o texto da pregação foi o conhecido relato dos discípulos no caminho de Emaús (Lucas 24). A celebração seguiu o tom tradicional: a vitória da vida sobre a morte, o reencontro com Cristo, a esperança reacesa.
Mas algo na leitura me inquietou.
No verso 16, segundo a Nova Tradução na Linguagem de Hoje, aparece a seguinte formulação:
“Mas alguma coisa não deixava que eles o reconhecessem.”
A pastora comentou: “Não me interessa o que foi essa ‘alguma coisa’, mas o fato de que ela impediu os discípulos de reconhecer Jesus.”
Pois a mim interessa — e muito — essa “alguma coisa”.
Esta exegese é uma tentativa de devolver complexidade ao versículo, investigando o que de fato diz o texto grego, e perguntando: o que impedia os discípulos de reconhecerem Jesus? Que papel essa experiência cumpre na narrativa? E o que isso nos diz hoje?
I. Texto e análise linguística (Lucas 24:16)
No grego original (UBS5), temos:
“οἱ δὲ ὀφθαλμοὶ αὐτῶν ἐκρατοῦντο τοῦ μὴ ἐπιγνῶναι αὐτόν.”
Transliteração:
hoi de ophthalmoi autōn ekratounto tou mē epignōnai auton.
Tradução literal:
“Mas os olhos deles estavam sendo impedidos de reconhecê-lo.”
Vocabulário essencial:
- ὀφθαλμοὶ (ophthalmoi): olhos — símbolo de percepção e discernimento.
- ἐκρατοῦντο (ekratounto): voz passiva imperfeita de krateō — “ser retido”, “ser dominado”, “ser impedido”.
- μὴ ἐπιγνῶναι (mē epignōnai): infinitivo negativo de epiginōskō — “reconhecer plenamente”, “compreender de modo profundo”.
O tempo verbal e a voz passiva revelam que algo externo aos discípulos impede que vejam. Não se trata de distração, mas de uma condição ativa de não percepção.
O texto não afirma que não quiseram reconhecê-lo.
Afirma que não puderam. Seus olhos foram impedidos.
II. Contexto narrativo e função teológica
Lucas 24 é cuidadosamente estruturado. A narrativa dos discípulos a caminho de Emaús é uma catequese pascal. O Cristo ressurreto caminha com eles, escuta sua dor, explica as Escrituras — e só depois é reconhecido no partir do pão (v. 31).
O atraso no reconhecimento tem função pedagógica. É no processo, e não no impacto imediato, que a presença do Ressuscitado se revela.
“A experiência do não-reconhecimento é, em Lucas, espaço de amadurecimento teológico. Reconhecer o Cristo exige tempo, escuta e partilha.”
(González, 2010, p. 264)
III. Leitura histórico-social: o que impedia o reconhecimento?
A comunidade lucana, no final do primeiro século, vive o trauma da ausência física de Jesus, a perseguição do império romano, e o luto das esperanças messiânicas adiadas.
O texto não espiritualiza o sofrimento. Ele o narra:
- “Estávamos esperando que ele fosse libertar Israel…” (v. 21)
- “Hoje já é o terceiro dia…”
- “Algumas mulheres nos deixaram espantados…”
Essa ambiguidade — esperança frustrada e rumores de ressurreição — retrata a vivência comunitária da ausência.
O impedimento de ver o Cristo é, então, um reflexo simbólico de uma condição social: o Cristo não é visto onde há dor demais, luto demais, ou expectativa idealizada demais.
“A invisibilidade do Ressuscitado é condição teológica da crise e da espera.”
(Crüsemann, 2003, p. 198)
IV. O reconhecimento no partir do pão (v. 31)
Somente no verso 31 os olhos se abrem:
“διηνοίχθησαν οἱ ὀφθαλμοὶ αὐτῶν, καὶ ἐπέγνωσαν αὐτόν.”
“Então seus olhos se abriram, e o reconheceram.”
Agora, o verbo é διηνοίχθησαν (diēnoichthēsan) — “foram totalmente abertos”. A abertura é passiva: algo age sobre eles.
O reconhecimento acontece não pela doutrina, mas pelo gesto: no partir do pão.
A revelação acontece na partilha — o símbolo eucarístico, mas também social, comunitário, cotidiano.
“A presença do Cristo se dá no gesto solidário. A narrativa lucana subverte os lugares convencionais do sagrado.”
(Schüssler Fiorenza, 1991, p. 142)
V. Hermenêutica contemporânea: o que nos impede hoje?
O que nos impede de reconhecer Jesus?
Talvez o peso das instituições que o moldaram à imagem do poder.
Talvez a idolatria das certezas.
Talvez o cansaço coletivo diante da espera messiânica que nunca se cumpre do jeito que esperávamos.
Hoje, como ontem, Jesus caminha ao lado — mas fora dos sistemas.
Não está no dogma, mas no caminho.
Não se revela no esplendor, mas no gesto comum da mesa.
VI. Conclusão: olhos abertos pela partilha
Lucas 24:16 não é um mistério irrelevante.
É o retrato de uma comunidade que aprendeu a ver devagar.
Que reconheceu o Cristo não pelo currículo divino, mas pela humanidade do gesto.
E isso nos chama a reaprender:
Ver o Cristo no andarilho.
Ouvir sua voz no cansaço.
Reconhecê-lo no partir do pão — e na partilha da dor.
Que nossos olhos sejam abertos.
E que, ao abrir os olhos, o coração volte a arder.
Referências bibliográficas
- GONZÁLEZ, Justo L. Lucas: Comentário Bíblico Latino-Americano. São Leopoldo: Sinodal, 2010.
- CRÜSEMANN, Frank. A Torá: Teologia e História Social da Lei do Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2003.
- SCHWANTES, Milton. Lucas: o Evangelho do Caminho. São Paulo: Paulus, 1995.
- SCHÜSSLER FIORENZA, Elisabeth. Revelation: Vision of a Just World. Minneapolis: Fortress Press, 1991.
- TILLICH,
Comentários
Postar um comentário