Quem foi Papa Francisco? A memória pastoral e política de Jorge Mario Bergoglio
Francisco: o papa que preferiu ser padre?
Uma memória pastoral e política da figura de Jorge Mario Bergoglio
O anúncio da morte de Francisco I não silenciou o mundo. Ao contrário: reabriu feridas, reavivou afetos e fez ecoar debates que ultrapassam a figura do homem. Morreram o padre de Buenos Aires, o teólogo improvisado, o pontífice popular — mas permanece em disputa o seu legado.
Muito já foi dito sobre Jorge Mario Bergoglio. Que era um jesuíta atípico. Que enfrentou resistências internas. Que ousou usar o nome de Francisco — em homenagem ao pobre de Assis — como gesto inaugural de seu ministério. Tudo isso é verdade. Mas talvez não seja suficiente.
A impressão que fica, para muitos de nós, é que Francisco foi o papa que preferiu ser padre.
Preferiu o gesto simples ao discurso elaborado. Preferiu o hospital de campanha à cátedra dourada. Preferiu a escuta ao dogma. Preferiu a dúvida honesta à certeza estéril.
Entre o altar e a trincheira
Francisco foi também o papa que se arriscou a caminhar entre tensionamentos: aproximou-se de comunidades LGBTQIA+ ao mesmo tempo em que reafirmava limites doutrinários; falou de “igreja pobre para os pobres”, mas conviveu com as finanças vaticanas; denunciou o mercado, mas não reformou radicalmente a cúria. Foi, ao fim, uma figura em trânsito. Incompleta. Ambígua. Humana.
Como padre, não escondeu sua origem latino-americana — e isso foi decisivo. Trazia nas costas o cheiro de Buenos Aires, de favelas, de silêncio de ditaduras e de complicidades eclesiásticas que marcaram a história argentina. E se, num primeiro momento, sua formação jesuítica nos fazia suspeitar de seu perfil, aos poucos ele mostrou que se fazia herdeiro de Francisco — o santo — e não da Companhia que tantas vezes endossou as fogueiras inquisitoriais da história.
Contra a ortodoxia do medo
Francisco rompeu com a ortodoxia da negação. Trouxe à tona debates abafados:
- a dignidade das pessoas trans;
- o cuidado da criação como missão espiritual;
- a possibilidade de reaproximação inter-religiosa sem anulação da alteridade;
- a crítica à teologia da prosperidade e ao neoliberalismo travestido de fé.
Sua postura incomodou. Irritou setores conservadores. Suscitou “profecias” de catástrofe (que já estão de novo sendo alimentadas com sua morte). Mas talvez o que mais tenha feito foi nos lembrar de que o Evangelho é anúncio, não ameaça. Que o altar precisa cheirar a povo, não a perfume. Que autoridade não combina com arrogância.
E agora?
Com a morte de Francisco, o mundo assiste à convocação de um novo conclave. E como sempre, paira a pergunta: avançaremos no caminho da escuta, ou recuaremos à dogmática do medo?
Francisco não foi o papa das reformas radicais — mas foi o papa do gesto.
Não ficou conhecido por grandes documentos — mas pelas pequenas visitas.
Não redescobriu o cristianismo — mas nos lembrou que a santidade talvez esteja em lavar os pés.
Seus críticos o acusaram de populismo, de relativismo, de fraqueza doutrinária.
Mas talvez ele tenha apenas escolhido ser pastor antes de ser teólogo.
E isso, numa igreja marcada pela institucionalização da indiferença,
— já é uma revolução.
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