A Morte de Josias: Contradições Canônicas e Disputas Sacerdotais em Reis e Crônicas
Exórdio: A confiabilidade da Bíblia à prova de Megido
É comum, sobretudo nos ambientes religiosos de forte apelo retórico, a tentativa de sustentar a Bíblia como “o livro mais confiável do mundo” com base em slogans apologéticos e estatísticas de circulação editorial. Ainda hoje, em pleno avanço do secularismo acadêmico e da crítica histórica, multiplicam-se vídeos de pregadores que se gabam de enfrentar grupos de ateus “despreparados”, alardeando vitórias argumentativas sem qualquer compromisso com o rigor metodológico da teologia crítica ou da epistemologia laica.
O problema emerge quando essa pretensa confiabilidade do texto bíblico é confrontada não com os céticos externos à tradição, mas com o próprio conteúdo interno das Escrituras — especificamente, com seus relatos múltiplos, tensionados e por vezes contraditórios.
Um exemplo paradigmático é a narrativa da morte do rei Josias, registrada em dois livros canônicos: 2 Reis 23:28–30 e 2 Crônicas 35:20–27. O primeiro relato é objetivo, lacônico e teologicamente desconcertante: Josias, o mais fiel dos reis, morre em combate sem que haja qualquer indicação de juízo divino ou advertência profética. Já o segundo relato, em Crônicas, introduz um discurso profético pronunciado por um rei estrangeiro — Necao, do Egito —, apresenta Josias como desobediente à palavra de Deus e encerra com um extenso lamento nacional por sua morte. Em uma versão, Josias parece vítima trágica do acaso ou da política internacional; na outra, é o símbolo de um rei piedoso que erra ao desconsiderar um oráculo divino e paga com a vida.
A questão, portanto, é inevitável: como conciliar duas versões tão distintas do mesmo evento, ambas reconhecidas como Escritura Sagrada, ambas reivindicando autoridade e ambas apresentando uma imagem divergente do agir divino? Se a confiabilidade da Bíblia depende da coerência literal e factual entre suas partes, como sustentar tal confiabilidade diante de uma tensão textual tão evidente? E mais: é possível que dois textos inspirados apresentem imagens distintas de Deus? Ou seria a inspiração um processo mais complexo que escapa aos critérios reducionistas da apologética popular?
Estas questões não apenas exigem uma análise exegética minuciosa dos textos em hebraico, com atenção ao léxico, à sintaxe e à forma literária, mas também requerem uma hermenêutica crítica que reconheça os múltiplos estágios de composição, redirecionamento e teologização dos textos bíblicos. A leitura histórica da Bíblia não enfraquece sua autoridade: ao contrário, a fortalece por meio do reconhecimento honesto de sua complexidade interna e da pluralidade de suas vozes. É nesse campo — onde a história encontra a fé, e a crítica encontra o texto — que se instalará a presente investigação.
Exegese de 2 Reis 23:29–30
Texto Hebraico e Transliteração
2 Reis 23:29
וְיָמָיו עָלָה פַרְעֹה נְכֹה מֶלֶךְ־מִצְרַיִם עַל־מֶלֶךְ אַשּׁוּר עַל־נְהַר־פְּרָת וַיֵּלֶךְ הַמֶּלֶךְ יֹאשִׁיָּהוּ לִקְרָאתוֹ וַיְמִיתֵהוּ בִּמְגִדּוֹ כִּרְאוֹתוֹ אֹתוֹ
Veyamav ‘alah Par‘oh Nekho melekh-Mitzrayim ‘al-melekh Ashur ‘al-nehar Perat; vayelekh hamelekh Yoshiyahu likrato, vayemitehu b’Megiddo kir’oto oto.
2 Reis 23:30
וַיַּרְכִּבֻהוּ עֲבָדָיו מֵת מִמְּגִדּוֹ וַיְבִאֻהוּ יְרוּשָׁלִַם וַיִּקְבְּרֻהוּ בִּקְבֻרָתוֹ וַיִּקַּח עַם־הָאָרֶץ אֶת־יְהוֹאָחָז בֶּן־יֹאשִׁיָּהוּ וַיִּמְשְׁחוּ אֹתוֹ וַיַּמְלִיכוּ אֹתוֹ תַּחַת אָבִיו
Vayarkivuhu ‘avadav met mim-Megiddo, vayevihu Yerushalayim, vayiqberuhu biqvurato; vayyiqqach ‘am-ha’aretz et-Yehō’āchāz ben-Yoshiyahu, vayimshĕchuhu oto, vayamlichuhu oto tachat aviv.
Tradução Literal
2 Reis 23:29: "Nos seus dias, subiu Faraó Neco, rei do Egito, contra o rei da Assíria, ao rio Eufrates; e o rei Josias foi ao seu encontro, e ele o matou em Megido, ao vê-lo."
2 Reis 23:30: "E seus servos o levaram morto de Megido, e o trouxeram a Jerusalém, e o sepultaram em seu sepulcro; e o povo da terra tomou Jeoacaz, filho de Josias, e o ungiu, e o fez rei em lugar de seu pai."
Análise Lexical e Sintática
- וְיָמָיו (veyamav): "E nos seus dias" – Fórmula cronológica típica.
- עָלָה (‘alah): "subiu" – Indica movimentação militar estratégica.
- פַרְעֹה נְכֹה (Par‘oh Nekho): Nome do faraó egípcio.
- מֶלֶךְ־מִצְרַיִם (melekh-Mitzrayim): "rei do Egito".
- עַל־מֶלֶךְ אַשּׁוּר (al-melekh Ashur): "contra o rei da Assíria".
- וַיֵּלֶךְ (vayelekh): "e foi" – Movimento de Josias em direção ao confronto.
- וַיְמִיתֵהוּ (vayemitehu): "e ele o matou" – Ambiguidade no sujeito, mas tradicionalmente atribuído a Neco.
- כִּרְאוֹתוֹ אֹתוֹ (kir’oto oto): "ao vê-lo" – Encontro direto e possível emboscada.
- וַיַּרְכִּבֻהוּ (vayarkivuhu): "e o colocaram sobre um carro" – Translado fúnebre.
- עַם־הָאָרֶץ (‘am-ha’aretz): "o povo da terra" – Representantes locais que elegem o novo rei.
- וַיִּמְשְׁחוּ אֹתוֹ (vayimshĕchuhu oto): "e o ungiram" – Legitimação régia de Jeoacaz.
Observações Exegéticas e Literárias
- Resumo narrativo: Relato direto, sem juízo teológico explícito.
- Ausência de culpa: Silêncio que contrasta com avaliações morais anteriores.
- Conflito teológico: O "melhor" rei morre de forma abrupta, sem explicação religiosa clara.
- Crise na teologia deuteronomista: O dogma da recompensa por fidelidade é desafiado.
Essa exegese inaugura o confronto entre as versões sobre a morte de Josias, revelando tensões entre tradição e teologia. Na sequência, será apresentada a análise detalhada de 2 Crônicas 35:20–27, que reinterpretará a narrativa com novo viés teológico, próprio da literatura cronista.
Conclusão: A inconfiabilidade como critério crítico de leitura
A coexistência de duas narrativas substancialmente diferentes sobre a morte de Josias, mantidas no mesmo corpo canônico sem tentativa de harmonização, não é um descuido editorial — é a marca visível de um texto cujo objetivo não é registrar a história em sua factualidade, mas construir sentidos teológicos a partir de eventos significativos. A morte do rei justo, ocorrida de forma trágica e sem explicação (em Reis), ou reinterpretada com culpa e liturgia (em Crônicas), demonstra que o texto bíblico deve ser lido como produção literária situada em contextos históricos, sociais e teológicos distintos — e, muitas vezes, conflitantes.
A confiabilidade da Bíblia como "fonte de verdade" não pode, sob nenhum critério acadêmico, ser tratada nos mesmos moldes da historiografia, da arqueologia ou da análise documental. A Bíblia é, antes de tudo, um conjunto de vozes que dialogam, disputam e reinterpretam os eventos de seu tempo. Cada redator, cada escola teológica (como os deuteronomistas ou os cronistas), insere ali sua leitura do mundo, sua política cultual, sua cosmologia moral. Ignorar essa pluralidade e complexidade é condenar o texto à idolatria da literalidade.
Portanto, o primeiro passo hermenêutico que se exige do leitor contemporâneo não é perguntar "o que Deus quis dizer", mas antes: quem está falando? Em que contexto? Com que objetivo? Só depois de ouvir e distinguir essas vozes — múltiplas, contraditórias, entrelaçadas — será possível construir pontes para a interpretação contemporânea, seja em ambientes religiosos, seja no campo crítico das ciências da religião.
A Bíblia não é um documento confiável no sentido histórico-jornalístico, mas é um documento essencial no campo da história das ideias, das práticas religiosas e da formação de identidades sociais. Seu valor reside justamente nessa tensão: ela nos desafia a pensar teologicamente sem abrir mão da crítica, a crer sem abdicar da razão, a desconfiar para compreender melhor.
Pós-conclusão: Como acessar um texto que é polissêmico em sua gênese?
A constatação de que o texto bíblico é polissêmico em sua gênese não deve ser encarada como ameaça à fé, mas como convite à responsabilidade hermenêutica. A multiplicidade de vozes, camadas e intenções que atravessam a Bíblia exige, antes de qualquer adesão confessional, o reconhecimento de que se trata de uma literatura produzida em contextos de disputa: entre tradições sacerdotais, entre visões de mundo em tensão, entre propostas teológicas concorrentes.
Essa polissemia não é defeito, é traço constitutivo. Um texto que atravessa séculos, civilizações e conflitos não poderia ser monolítico. Por isso, o primeiro passo para acessá-lo de forma honesta é abdicar da ideia de que há um “sentido único” ou “verdade absoluta” facilmente extraível do texto. A Bíblia não entrega seu conteúdo a quem a lê com pressa ou com a ânsia de confirmação ideológica; ela se abre lentamente, por fricção, por confronto, por escuta atenta às entrelinhas.
É neste ponto que emerge a necessidade de uma teologia de trincheiras — não como teologia da guerra ou do sectarismo, mas como postura de quem lê a partir do chão. O chão do embate cultural, do conflito entre saberes, da recusa a hierarquizar ciência e religião, do enfrentamento às leituras que domesticam o texto em prol da autoridade pastoral ou doutrinária. Ler a Bíblia desde a trincheira é fazer dela um campo de escavação, não de consolo fácil. É buscar suas contradições com a mesma seriedade com que se busca suas esperanças.
Ao crente, portanto, não se pede que abandone a fé. Pede-se que reoriente sua fé a partir da complexidade. Uma fé que lê criticamente, que aceita não entender tudo, que encara a Bíblia como literatura sagrada — não por estar imune ao erro, mas por ter resistido ao tempo como espaço de disputa pelo sagrado. Essa fé, menos triunfalista e mais interrogativa, é a única que pode dialogar com o mundo contemporâneo sem incorrer em fundamentalismo ou anacronismo.
O acesso à Bíblia, portanto, exige uma formação crítica, interdisciplinar, que articule filologia, arqueologia, história, antropologia e teologia. Só assim o texto poderá ser lido não como ditado divino, mas como testemunho plural da busca humana por Deus — ou, ao menos, por sentido.

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