Cristianismo Sem Mãe: Gnose, Encarnação e a Ausência de Maria na Fé Moderna
EXÓRDIO – “Mulher, e não mãe?”
Poucos personagens são tão reverenciados na tradição cristã quanto Maria de Nazaré. Venerada como a Theotokos (Mãe de Deus) desde o Concílio de Éfeso (431 d.C.), sua imagem consolidou-se como arquétipo da mãe abnegada, silenciosa, entregando seu filho à missão divina. É justamente por isso que um detalhe linguístico nos evangelhos chama tanto a atenção: Jesus jamais se refere a ela como “mãe”.
Ao longo dos evangelhos canônicos, em momentos decisivos – como o milagre inaugural em Caná (Jo 2), o episódio no templo (Lc 2), o momento na cruz (Jo 19) e os encontros com seus familiares durante a pregação (Mt 12, Mc 3, Lc 8) – Jesus evita o uso do termo “mãe”, dirigindo-se a Maria com o título de “mulher” ou mesmo sem qualquer identificação afetiva explícita.
Isso pode soar, à primeira vista, como frieza, distanciamento ou até desdém. Mas a ausência do vocativo “mãe” é um recurso teológico e simbólico muito mais profundo, cuja análise exige cuidado, rigor e honestidade.
Esse estranhamento leva a perguntas provocativas: por que Jesus não a chama de mãe? Por que essa omissão persiste mesmo em momentos de ternura ou sacrifício extremo, como na crucificação? Seria uma crítica velada à maternidade idealizada? Estaria Jesus dissolvendo os laços biológicos em prol de uma nova família espiritual? Ou, mais provocativamente: haveria motivos históricos ou teológicos para questionar o vínculo de maternidade entre Maria e Jesus?
A tradição sempre sustentou que Maria era sua mãe biológica, com destaque especial nos evangelhos de Mateus e Lucas. No entanto, há registros antigos que tensionam essa maternidade. Os docetistas, por exemplo, afirmavam que Jesus apenas parecia ter um corpo humano – negando assim a maternidade corpórea de Maria. Os ebionitas, por sua vez, consideravam Jesus um profeta humano, mas negavam a concepção virginal. Já os textos gnósticos, como o Evangelho de Filipe, chegaram a afirmar que Maria não teria engravidado de modo biológico, mas simbólico, esotérico – reforçando a ideia de um Cristo mais etéreo do que encarnado.
O mais curioso, no entanto, é que mesmo dentro do cânon bíblico, a relação entre Jesus e Maria é construída com tensões. A cena de Caná apresenta um tom brusco, a ponto de estudiosos como Raymond E. Brown e John P. Meier debaterem se o uso do termo “mulher” por Jesus ali teria sido rude ou simplesmente uma forma semítica respeitosa. Outros, como Hans Urs von Balthasar, enxergam nessas falas um esforço de Jesus para redimensionar a maternidade de Maria – não mais fundada no sangue, mas na escuta da Palavra de Deus.
O que está em jogo, então, é a própria configuração dos vínculos familiares na comunidade cristã nascente. Ao desbiologizar a figura materna, Jesus pareceria querer refundar a noção de pertencimento e filiação, alicerçando-os não mais em genealogias, mas em adesão ética e espiritual.
Neste estudo, faremos um mergulho exegético e histórico nos textos centrais que abordam essa tensão, especialmente os relatos de Marcos 3:31–35, Mateus 12:46–50 e Lucas 8:19–21. Buscaremos entender, com profundidade, o que realmente dizem os evangelhos sobre a relação entre Jesus e Maria. Afinal, a pergunta ainda ecoa: por que o Filho do Homem evitou chamar Maria de mãe?
Parte 2 – Exegese comparada dos textos sinóticos
1. Marcos 3:31–35
Texto grego:
Καὶ ἔρχεται ἡ μήτηρ αὐτοῦ καὶ οἱ ἀδελφοὶ αὐτοῦ, καὶ ἔξω στήκοντες ἀπέστειλαν πρὸς αὐτὸν καλούντες αὐτόν.
Transliteração:
Kai érchetai hē mētēr autou kai hoi adelphoi autou, kai exō stēkontes apesteilan pros auton kalountes auton.
Tradução literal:
E vem sua mãe e seus irmãos, e estando de fora, enviaram a ele chamando-o.
Análise:
O autor do evangelho apresenta a figura materna e os irmãos de Jesus como estando “fora” – tanto literal quanto simbolicamente. O termo μήτηρ (mētēr) indica “mãe”, mas é usado apenas pelo narrador. Jesus, enquanto personagem, não o utiliza. O mesmo vale para ἀδελφοὶ (adelphoi), cuja tradução mais direta é “irmãos” (e não “parentes”).
Verso 33: Καὶ ἀποκριθεὶς αὐτοῖς λέγει· Τίς ἐστιν ἡ μήτηρ μου καὶ οἱ ἀδελφοί;
Transliteração: Kai apokritheis autois legei: Tis estin hē mētēr mou kai hoi adelphoi?
Tradução: E respondendo a eles, disse: Quem é minha mãe e [quem são] meus irmãos?
Comentário:
A resposta é retórica e rompe com a ideia tradicional de família. Jesus aponta para uma nova identidade relacional baseada na obediência à vontade de Deus.
2. Mateus 12:46–50
Texto grego:
Ἔτι αὐτοῦ λαλοῦντος τοῖς ὄχλοις, ἰδοὺ ἡ μήτηρ καὶ οἱ ἀδελφοὶ αὐτοῦ εἱστήκεισαν ἔξω ζητοῦντες αὐτῷ λαλῆσαι.
Transliteração:
Eti autou lalountos tois ochlois, idou hē mētēr kai hoi adelphoi autou hēistēkeisan exō zētountes autō lalēsai.
Tradução literal:
Enquanto ele ainda falava às multidões, eis que sua mãe e seus irmãos estavam do lado de fora, buscando falar com ele.
Verso 48: Ὁ δὲ ἀποκριθεὶς εἶπεν τῷ λέγοντι αὐτῷ· Τίς ἐστιν ἡ μήτηρ μου καὶ τίνες εἰσίν οἱ ἀδελφοί μου;
Comentário:
O autor de Mateus segue Marcos, mas amplia o sentido didático. A mão estendida aos discípulos (v. 49) é um gesto simbólico que reforça a nova lógica de pertencimento espiritual.
3. Lucas 8:19–21
Texto grego:
Παρεγένετο δὲ πρὸς αὐτὸν ἡ μήτηρ καὶ οἱ ἀδελφοὶ αὐτοῦ, καὶ οὐκ ἠδύναντο συντυχεῖν αὐτῷ διὰ τὸν ὄχλον.
Transliteração:
Paregeneto de pros auton hē mētēr kai hoi adelphoi autou, kai ouk ēdunanto syntychein autō dia ton ochlon.
Tradução literal:
E veio até ele sua mãe e seus irmãos, e não puderam alcançá-lo por causa da multidão.
Verso 21: Ὁ δὲ εἶπεν πρὸς αὐτούς· Μήτηρ μου καὶ ἀδελφοί μου οὗτοί εἰσιν οἱ τὸν λόγον τοῦ θεοῦ ἀκούοντες καὶ ποιοῦντες.
Tradução:
E ele respondeu a eles: Minha mãe e meus irmãos são estes que ouvem a palavra de Deus e a praticam.
Comentário:
Lucas suaviza a tensão, mas mantém a mesma estrutura simbólica: a família espiritual substitui os laços sanguíneos. O afastamento físico tem função teológica.
Parte 3 – Análise histórico-social: parentesco, identidade e função teológica de Maria
A análise histórica da figura de Maria no contexto do Jesus histórico e da formação do cristianismo primitivo revela um tensionamento constante entre a tradição popular de uma maternidade exaltada e os registros literários mais antigos, nos quais Maria aparece com papéis ambíguos, reduzidos ou mesmo problematizados.
1. Maria nos evangelhos sinóticos: marginalidade narrativa
Nos evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas), a figura de Maria não ocupa um espaço central. Marcos, o mais antigo dos evangelhos (ca. 70 d.C.), sequer menciona o nascimento virginal, e apresenta Maria em um episódio que pode ser lido como um afastamento ou até uma incompreensão da missão de Jesus (Mc 3:21,31-35). Essa ausência de ênfase se contrapõe à teologia posterior, sobretudo lucana e joanina, que contribuiu para a construção mariológica no cristianismo.
A marginalização de Maria nesses relatos parece deliberada e estratégica. Como observa Raymond Brown, “o papel de Maria é minimizado para realçar que a verdadeira família de Jesus é composta pelos que fazem a vontade de Deus”. Brown e outros estudiosos do Jesus histórico apontam que o movimento de Jesus tensionava fortemente os modelos tradicionais de família e linhagem, típicos do judaísmo de seu tempo.
2. A redefinição da família e a ruptura com a honra paterna
A sociedade judaica do século I era profundamente patriarcal. A honra familiar e o nome do pai eram os eixos da identidade masculina. Nesse sentido, a associação de Jesus a Maria — e a ausência de menções diretas ao pai biológico — configuram, não só uma anomalia, mas também um ato contracultural. A tradição lucana tenta corrigir essa lacuna por meio da concepção virginal, estabelecendo a filiação divina direta.
O que os textos sinóticos revelam, porém, é outra construção: Jesus desafia a centralidade da família de sangue como base de pertencimento. Tal desafio era escandaloso no Oriente Médio do século I. Como argumenta John Meier, “para um judeu palestino do primeiro século, romper com a família era romper com a própria identidade social e religiosa”. O fato de os evangelistas manterem esse episódio, mesmo com sua força disruptiva, é indicativo de sua autenticidade e importância na tradição oral.
3. A função teológica da ruptura
A exclusão da figura materna de discursos afirmativos de Jesus cumpre um papel teológico: fundar a nova comunidade, não sobre os vínculos de carne, mas sobre a escuta e prática da palavra. Isso se alinha à lógica das primeiras comunidades cristãs, que buscavam identidade comum entre gentios e judeus, homens e mulheres, livres e escravizados. A nova “família” não precisava de genealogia biológica.
Nesse sentido, Maria funciona mais como um símbolo a ser reelaborado do que como uma figura histórica central. O desenvolvimento da teologia mariana ocorreu em contextos muito posteriores (sobretudo após o século IV), quando o cristianismo já havia institucionalizado muitos de seus símbolos e necessitava de uma figura materna universal.
4. Relatos que contestam a maternidade biológica de Maria
Ao longo da história da teologia e da literatura cristã marginal (apócrifos, gnósticos, místicos), há insinuações e questionamentos sobre a maternidade de Maria. Alguns grupos gnósticos e docetistas negavam a humanidade de Jesus e, consequentemente, sua origem carnal, incluindo a maternidade de Maria. Em contrapartida, os pais da Igreja elaboraram dogmas como o da Theotokos (Maria como Mãe de Deus) para consolidar a ortodoxia.
Contudo, mesmo dentro da tradição canônica, é curioso o modo como Jesus — enquanto personagem — se refere à sua mãe apenas por títulos genéricos, como “mulher” (Jo 2:4) ou evitando o uso de “mãe”. Isso, ao invés de ser lido como desrespeito, deve ser entendido como uma recusa simbólica de qualquer autoridade afetiva ou genealógica que pudesse se sobrepor à sua missão.
5. A tradição da abnegação materna: construção tardia?
A imagem de Maria como mãe abnegada, silenciosa, submissa à missão do filho, é uma construção teológica e cultural. A própria Escritura pouco sustenta esse retrato: Maria aparece em pouquíssimas passagens e, na maioria delas, sem protagonismo ou fala ativa. O silêncio e a contemplação atribuídos a ela (“Maria guardava todas essas coisas em seu coração” – Lc 2:19) foram amplificados por séculos de espiritualidade monástica e mariologia.
Teólogas como Elizabeth Schüssler Fiorenza e Ivone Gebara questionam essa construção e buscam recuperar uma Maria mais histórica, talvez militante, talvez resistente, talvez ausente da narrativa não por insignificância, mas por uma escolha editorial dos evangelistas masculinos.
A análise histórico-social revela que a relação entre Jesus e Maria é teológica, antes de ser biográfica. Maria é usada como símbolo, não como mãe no sentido íntimo e afetivo. Sua presença, marginal ou silenciada nos evangelhos sinóticos, indica uma tensão entre os laços sanguíneos e a nova comunidade espiritual fundada por Jesus.
A ausência da palavra “mãe” nos lábios do personagem Jesus não é casual; é um gesto literário e teológico que visa deslocar o centro de identidade e pertencimento. A tradição posterior, ao exaltá-la, cumpre outra função — pastoral, afetiva, simbólica — que ultrapassa o texto e projeta Maria como arquétipo de todas as mães e de toda a Igreja.
Parte 4 – Revisão teológica e implicações contemporâneas da maternidade simbólica de Maria
Depois de analisarmos os textos sinóticos e os contextos históricos que envolvem a presença de Maria nas narrativas evangélicas, somos conduzidos a uma questão inevitável: se as falas atribuídas a Jesus — nas formulações literárias dos evangelistas — evitam o uso direto do termo “mãe”, e se a sua proposta de discipulado reconfigura a ideia de parentesco, como interpretar a posterior consagração eclesiástica de Maria como “Mãe de Deus”, “Mãe da Igreja” e símbolo da maternidade cristã?
1. Maria como símbolo e função eclesiológica
O desenvolvimento da teologia mariana, principalmente a partir dos séculos II e III, deslocou a figura de Maria do plano narrativo-biográfico para o plano simbólico-litúrgico. Essa transição é fundamental: Maria deixa de ser apenas a mulher hebreia que aparece nos evangelhos e passa a ser uma imagem construída, moldada por interesses doutrinários e espirituais de diferentes contextos históricos.
Para Hans Urs von Balthasar, Maria é o arquétipo da Igreja porque nela se unem receptividade, escuta e fé incondicional. Nessa ótica, Maria representa mais do que uma personagem histórica: ela passa a ser a imagem da comunidade crente, da humanidade redimida que responde com abertura ao chamado divino. A maternidade deixa de ser uma questão biológica e torna-se função simbólica: Maria é “mãe” não apenas por gerar Jesus, mas por personificar a fé operante na história da salvação.
2. A maternidade espiritual entre católicos e protestantes
Na tradição católica, Maria é elevada ao posto de Theotokos (“Mãe de Deus”), título dogmatizado no Concílio de Éfeso (431 d.C.). Esse título não depende de registros históricos sobre o vínculo familiar entre Jesus e Maria, mas de afirmações cristológicas: Jesus é Deus encarnado, portanto, Maria é mãe de Deus no plano da encarnação. A maternidade, nesse sentido, é dogmática, não apenas narrativa.
Por outro lado, a tradição protestante, desde os Reformadores, embora tenha mantido um respeito a Maria como “serva do Senhor”, progressivamente se afastou da Mariologia como campo teológico. Lutero, por exemplo, ainda exaltava Maria como exemplo de fé, mas rejeitava qualquer culto ou doutrina que a colocasse como intercessora ou corredentora.
Na teologia contemporânea, especialmente nas correntes da teologia da libertação, teologia negra e teologia feminista, Maria é resgatada como mulher do povo, figura de resistência e símbolo de esperança. Leonardo Boff propõe uma Mariologia libertadora, em que Maria representa o povo sofredor que participa da história da salvação. Elizabeth Johnson, por sua vez, em Truly Our Sister, afirma que Maria deve ser lida como uma mulher real, inserida em seu tempo, cuja fé e coragem dialogam com a luta das mulheres de hoje.
3. Maternidade e identidade na contemporaneidade
A maternidade, hoje, não pode mais ser pensada em categorias essencialistas ou idealizadas. O modelo mariano, calcado na submissão e na abnegação, ainda tem efeitos simbólicos sobre o papel da mulher nas igrejas e nas sociedades. Questionar esse modelo não é rejeitar Maria, mas recontextualizar sua figura para que ela possa continuar sendo fonte de espiritualidade sem ser instrumento de opressão.
As teologias feministas e queer têm proposto uma releitura do feminino que desloca a maternidade do útero para a prática do cuidado, da escuta e da presença. Nessa chave, a recusa do termo “mãe” pelos autores dos evangelhos pode ser vista não como rejeição à maternidade, mas como crítica a um sistema de parentesco fechado e patriarcal. A nova família de Jesus é aquela formada por quem ouve e pratica a vontade de Deus — uma comunidade aberta, inclusiva e diversa.
4. Maria como símbolo de resistência
A ausência do termo “mãe” nas falas atribuídas ao personagem Jesus pode ser interpretada como movimento de deslocamento: a autoridade religiosa e afetiva não está mais na genealogia, mas no compromisso ético com o Reino de Deus. Maria, então, é elevada não pelo sangue, mas pela fé.
Ivone Gebara, em sua leitura ecológica e libertadora, propõe uma imagem de Maria que resiste: não como estátua imaculada, mas como mulher de carne e osso, com dúvidas, dores, força e fé. Maria é Terra, é vida, é ventre que acolhe e mãos que trabalham. Sua maternidade pode ser repensada como resistência amorosa diante de sistemas que matam e silenciam.
A figura de Maria está no centro de múltiplas disputas hermenêuticas. A análise literária dos evangelhos sinóticos, ao mostrar a ausência do termo “mãe” nas palavras do personagem Jesus, nos leva a repensar o significado da maternidade na tradição cristã. Longe de negar Maria, os textos abrem espaço para que ela seja compreendida para além da biologia e da idealização.
Maria é, sobretudo, uma função: ela representa o discipulado maduro, o amor resiliente, a fé que resiste. Ao invés de limitá-la à submissão materna, podemos reconhecê-la como símbolo da humanidade reconciliada, do povo em luta, da Igreja em êxodo.
Parte 5 – O retorno à mãe: reencontrar Maria para reencontrar a humanidade do Cristo
A tradição cristã, ao longo de séculos, buscou definir Maria por títulos cada vez mais elevados: Theotokos, Virgem Perpétua, Imaculada, Assunta. No entanto, esse esforço dogmático não impediu que, paradoxalmente, sua presença como mulher, mãe e figura concreta fosse minimizada no discurso teológico dominante, sobretudo nas tradições reformadas e no protestantismo moderno. Maria foi institucionalizada, mas não escutada; exaltada, mas retirada da narrativa como sujeito real.
Se assumirmos que a fé cristã se desenvolveu sob diversas tensões doutrinárias, é preciso reconhecer que uma delas se relaciona ao processo de gnosticização da cristandade, conforme apontado anteriormente. Neste processo, o corpo foi sendo desvalorizado, as relações familiares reduzidas, e o próprio nascimento e crescimento de Jesus, obscurecidos por ênfases espirituais. O esquecimento da mãe biológica de Jesus não é, portanto, um detalhe: ele exprime uma teologia do distanciamento da encarnação, em favor de uma cristologia abstrata e desvinculada da carne.
Johann Baptist Metz, ao propor uma teologia da memória perigosa, nos alerta para os riscos de uma amnésia do sofrimento. A maternidade de Maria, nesse sentido, é uma memória silenciada: uma mulher grávida fora do casamento, vivendo sob o risco da lapidação, uma mãe que foge com seu bebê para o Egito, que o procura perdido no templo, que o vê rejeitar sua presença em público e, finalmente, que o acompanha silenciosamente até a cruz. Reintegrar essa memória não é só restaurar Maria, mas recuperar a complexidade humana de Jesus, marcada pelas ambivalências familiares, pelos conflitos geracionais, pelas dores e afetos mais primitivos da vida em comunidade.
Jürgen Moltmann, em sua teologia da esperança, lembra que o Cristo crucificado é o que sofre com o mundo. Esse sofrimento, porém, não é apenas teológico: é também relacional. O Deus crucificado não sofre apenas por causa do pecado, mas também porque ama e é amado, porque foi gerado, cuidado, ferido, abandonado. Moltmann insiste que “Deus é vulnerável no seu amor”, e isso exige pensar que Jesus também o foi — como filho. E que, diante do abandono do Pai (“Eli, Eli, lama sabachthani”), permanece a figura humana de sua mãe, aos pés da cruz (Jo 19:25-27). Essa permanência, muda, sofrida, é a denúncia mais eloquente do cristianismo contra a lógica do abandono.
Dietrich Bonhoeffer, em suas cartas do cárcere, propõe uma fé “sem muletas”, um cristianismo adulto, que aprende a viver no mundo “como se Deus não existisse”. Mas talvez a fé adulta não consista em afastar-se da mãe, mas justamente em reencontrá-la como símbolo do humano pleno. A mãe que não resolve, que não explica, mas que está. O cristianismo infantilizado é aquele que cortou o vínculo com Maria porque não suportava a realidade de uma fé encarnada, frágil, concreta, feita de úteros, conflitos e lágrimas.
A ausência simbólica de Maria gera um cristianismo órfão, e o cristianismo órfão busca substituir a mãe por figuras de autoridade, por doutrinas absolutas, por líderes carismáticos que prometem segurança e identidade. Reencontrar Maria é, portanto, reencontrar-se com a própria humanidade do Cristo e, por consequência, com a própria humanidade da fé.
Esse reencontro não deve se dar no terreno dogmático, mas no reconhecimento da experiência histórica e corporal: Jesus nasceu, mamou, chorou no colo da mãe, teve conflitos com ela, afastou-se e depois aproximou-se novamente. Como qualquer filho. Reencontrar Maria é aceitar que Jesus teve história, que teve infância, que teve dores familiares, que foi moldado pelas relações. É admitir, com Paul Tillich, que “a encarnação não é a negação do humano, mas a sua plena afirmação”.
Assim, uma cristandade que deseja romper com o gnosticismo moderno precisa, mais do que recuperar doutrinas, reencontrar a mãe de Jesus como presença viva — não para adorá-la, mas para redescobrir o caminho pelo qual o Verbo se fez carne. E, com isso, aprender a caminhar com os próprios pés. Porque, ao final, o “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” encontra resposta não nos céus, mas na terra, nos olhos de uma mãe que permaneceu. Sem palavras, sem soluções, mas com amor encarnado até o fim.
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