Entre a Gnose e a Cruz: a tensão entre o cristianismo moderno e o Cristo encarnado

Uma crítica fenomenológica, histórica e teológica ao gnosticismo infiltrado na fé cristã

Quando o Gnosticismo Entra pela Porta da Frente (sem ser notado)

É recorrente, nos púlpitos, músicas e discursos devocionais protestantes, ouvir afirmações como: “este mundo não é o nosso lar”; “o corpo é apenas um invólucro passageiro”; “a alma é eterna, o corpo é terreno”; ou ainda “a igreja verdadeira é invisível, espiritual”. Tais ideias, amplamente aceitas como verdades do cristianismo, especialmente em sua vertente evangélica ou pentecostal, não são, contudo, oriundas do cânone bíblico em sua matriz hebraica. Elas ressoam, com notável precisão, os princípios fundamentais do pensamento gnóstico e suas matrizes filosófico-religiosas persas e helênicas.

Conforme aponta Elaine Pagels, a estrutura gnóstica básica envolve uma rejeição do mundo físico, entendido como prisão para a centelha divina da alma, e uma ênfase na salvação por meio do conhecimento oculto (gnosis) — algo radicalmente distinto da visão relacional e histórica da salvação nas tradições judaico-cristãs.

Esse dualismo corpo-alma, que leva à desvalorização da matéria e da experiência sensível, encontra raízes profundas no zoroastrismo persa, onde o mundo visível era considerado produto de uma luta cósmica entre Ahura Mazda (luz) e Angra Mainyu (trevas). No campo grego, Platão, especialmente no Fédon e no Timeu, sustenta que o corpo é prisão da alma e que a verdadeira realidade se encontra no mundo das ideias. Essa cosmovisão será mais tarde reelaborada nas escolas gnósticas cristianizadas dos séculos I a III, como indica Kurt Rudolph: “a oposição entre matéria e espírito, corpo e alma, é um dos traços mais característicos do gnosticismo tardio, que bebeu dessas fontes orientais e filosóficas para propor uma religião da libertação do corpo pela consciência”.

Frases como “igreja invisível” e “fé interior” refletem não apenas uma espiritualização moderna do cristianismo, mas um deslocamento gnóstico da dimensão comunitária e histórica da fé para um terreno esotérico e subjetivo. Esse modelo de religiosidade desinstitucionalizada e invisível pode ser rastreado até os tratados gnósticos de Nag Hammadi, nos quais a salvação é alcançada por um grupo eleito que detém acesso à gnosis, independentemente da comunhão histórica ou da prática comunitária visível.

A crítica de Rudolf Bultmann, ao denunciar a “cosmovisão mítica” presente nas Escrituras, não visa rejeitar o texto bíblico, mas alertar para a necessidade de distinguir os elementos culturais e filosóficos assimilados do núcleo kerigmático cristão. Ao desmitologizar o texto, Bultmann propõe uma hermenêutica que recupere o evento existencial da fé, descolado da metafísica dualista herdada de outras tradições.

É provocativo, mas necessário, admitir: muitas das ideias amplamente aceitas como “doutrina bíblica” são, na verdade, heranças de uma religiosidade gnóstica antiga, disfarçadas de cristianismo reformado. Como observa Karen Armstrong, o cristianismo sempre esteve em diálogo com os sistemas culturais do seu tempo — e, nesse processo, absorveu elementos que hoje passam despercebidos como não-cristãos.

Cabe, portanto, a pergunta que guiará este ensaio: em que medida o cristianismo protestante moderno tem se tornado um repositório gnóstico sob roupagem bíblica? Ou, dito de outro modo: teria a cristandade herdado, pela via do hábito e da tradição, um conjunto de ideias que contradiz frontalmente a encarnação, a corporeidade de Jesus e o valor histórico e comunitário da fé cristã primitiva?

Como advertiu Hans Jonas, um dos maiores estudiosos do gnosticismo moderno, “o perigo do gnosticismo não está em sua antiguidade, mas na sua persistente tentação moderna: abandonar o mundo em nome de um espiritualismo estéril”. É tempo de investigar as fontes — e desenterrar os fundamentos.

II. Gnosticismo: entre o Irã, a Grécia e o cristianismo nascente

Para compreender o gnosticismo como matriz influente — e não apenas como heresia cristã posterior — é necessário abandonar o anacronismo confessional que tende a vê-lo unicamente como desvio do cristianismo primitivo. O gnosticismo, em sua riqueza conceitual e pluralidade de sistemas, é antes uma constelação religiosa, filosófica e mística, que floresceu nos primeiros séculos da era comum, amalgamando correntes iranianas, helênicas, judaicas e, posteriormente, cristãs.

Segundo Kurt Rudolph, uma das autoridades acadêmicas mais respeitadas no tema, o gnosticismo “não é uma seita cristã desviada, mas uma estrutura religiosa autônoma que entra em contato com o cristianismo nascente e, em muitos casos, o influencia de maneira profunda” (Gnosis: The Nature and History of Gnosticism, 1983). A partir dessa premissa, é possível identificar dois troncos principais que alimentam o imaginário gnóstico: o dualismo persa e a metafísica platônica.

1. Dualismo Persa: a guerra entre luz e trevas

O zoroastrismo, religião oficial do Império Persa desde Ciro II (séc. VI a.C.), forneceu ao gnosticismo o paradigma cósmico do conflito entre forças antagônicas. No sistema de Zaratustra, a realidade é estruturada por dois princípios eternos e opostos: Ahura Mazda, o deus da luz e da ordem, e Angra Mainyu (Ahriman), o espírito das trevas e da desordem. Embora o zoroastrismo posterior tente suavizar esse dualismo com a vitória final da luz, o pensamento gnóstico o radicaliza: o mundo material é o domínio das trevas, criação de um deus inferior (o demiurgo), em oposição ao Deus verdadeiro, transcendente, inacessível.

Esse esquema se torna fundante na maioria dos sistemas gnósticos, como destaca Hans Jonas: “O mundo é um erro, o corpo é uma prisão, e a salvação consiste na fuga. Isso marca um distanciamento absoluto do pensamento bíblico, que vê a criação como boa e o corpo como parte da imagem de Deus” (The Gnostic Religion, 1958).

2. Platão e o dualismo metafísico

Do lado grego, a herança vem, sobretudo, do platonismo, com destaque para os diálogos Fédon, Timeu e República. Em Platão, a realidade sensível é imperfeita, uma sombra do mundo ideal. O corpo é cárcere da alma, e a morte é libertação. Esses conceitos são reelaborados pelas escolas neoplatônicas e estoicas, e chegam ao gnosticismo cristianizado com roupagens esotéricas.

A influência platônica é tão clara que Giovanni Filoramo, ao estudar os manuscritos de Nag Hammadi, conclui que “sem Platão, não há gnose. A alma que se eleva por meio do conhecimento até reencontrar sua pátria celeste é uma estrutura essencialmente platônica, reinterpretada num horizonte religioso pessimista” (A História da Gnose, 1993).

3. Elementos judaicos e helenísticos: a figura do demiurgo

O pensamento judaico, por sua vez, entra nesse caldo simbólico sobretudo por meio do judaísmo helenizado de Alexandria, onde autores como Fílon de Alexandria (séc. I) já realizavam sínteses entre o Deus hebraico e o Logos grego. O demiurgo gnóstico, figura central em diversos textos como O Apócrifo de João e O Evangelho da Verdade, é uma paródia do Criador bíblico — arrogante, ignorante, responsável por aprisionar as centelhas divinas na matéria.

Conforme destaca Bentley Layton, “os gnósticos criaram um universo teológico paralelo, onde o Deus do Gênesis é substituído por um arconte cego e presunçoso, um reflexo distorcido do verdadeiro Deus, que permanece oculto” (The Gnostic Scriptures, 1987).

4. A gnosis como chave de salvação

Diferentemente do cristianismo apostólico, que enfatiza fé, encarnação e história, o gnosticismo propõe a salvação por meio da gnosis: um conhecimento secreto, revelado a poucos, capaz de libertar a alma do ciclo material. Essa concepção de salvação elitista e anti-histórica tem paralelos não apenas em religiões orientais de mistério (como o maniqueísmo), mas também nos cultos iniciáticos helenísticos, onde a experiência mística substitui a ética pública e a relação comunitária.

Como sintetiza April DeConick, “a gnose é um saber experiencial e interior, que descarta a fé comunitária e as instituições. É a religião do indivíduo iluminado, não da assembleia dos santos” (The Gnostic New Age, 2016).

Expansão: Textos gnósticos e suas estruturas teológicas

A descoberta da biblioteca de Nag Hammadi, no Egito, em 1945, trouxe à luz um rico acervo de textos gnósticos originais, muitos dos quais antes conhecidos apenas por refutações de Padres da Igreja como Irineu, Hipólito ou Tertuliano.

  • O Apócrifo de João apresenta a narrativa gnóstica por excelência: um Deus supremo incognoscível, emanações sucessivas (éons), e a criação do mundo por um demiurgo ignorante (Ialdabaoth).
  • O Evangelho de Tomé retrata Jesus como mestre de sabedoria esotérica. Não há paixão, cruz ou ressurreição. A salvação está no autoconhecimento.
  • A Hipóstase dos Arcontes descreve o mundo como governado por seres inferiores, e a salvação como o rompimento dessa prisão cósmica.

Esses textos, como bem observa Elaine Pagels, “concorriam com os evangelhos canônicos nas primeiras comunidades cristãs, oferecendo uma espiritualidade centrada na interioridade e no desvelamento do divino dentro do humano” (The Gnostic Gospels, 1979).

Expansão: A evolução do gnosticismo — Maniqueísmo e Catarismo

A tradição gnóstica não desapareceu com os concílios dos séculos IV e V. Ela se transfigurou em movimentos posteriores, que mantinham seu núcleo dualista e anticosmológico.

  • O maniqueísmo, fundado por Mani no século III, funde zoroastrismo, cristianismo e budismo. O mundo material é prisão, e a salvação é o retorno à luz. Segundo Jason BeDuhn, “o maniqueísmo é a gnose transformada em sistema missionário global” (The Manichaean Body, 2000).
  • O catarismo medieval resgata os princípios gnósticos: rejeição do Antigo Testamento, da Igreja e da matéria. Foi combatido pela cruzada albigense e pela Inquisição, mas marcou a espiritualidade ocidental alternativa.

III. Apropriações gnósticas na história do cristianismo

Se o gnosticismo representa uma matriz religiosa multifacetada, enraizada nas tradições persas, helênicas e judaicas helenizadas, sua relação com o cristianismo não pode ser simplificada como antagonismo absoluto. Ao contrário: embora os primeiros séculos da Igreja tenham sido marcados por um esforço explícito de oposição às correntes gnósticas, diversas categorias teológicas, estruturas narrativas e posturas espirituais foram apropriadas, adaptadas ou mesmo absorvidas pelo discurso cristão, particularmente em momentos de crise institucional, renovação espiritual ou reorganização do poder religioso. A análise histórica revela, portanto, um entrelaçamento mais profundo do que as ortodoxias posteriores admitiram — um entrelaçamento que pode ser descrito como uma “cooptação seletiva”, onde elementos do gnosticismo foram integrados à estrutura eclesiástica de maneira funcional e teologicamente assimilável.

1. Patrística: assimilação sob o combate

Durante os séculos II e III, a chamada patrística — o esforço teológico dos primeiros “pais da Igreja” em organizar uma ortodoxia cristã — caracterizou-se por um embate frontal com diversas escolas gnósticas. Autores como Valentim, Basílides, Marcião e Mani formulavam sistemas complexos, onde o mundo material era visto como produto de uma divindade inferior (demiurgo), e a salvação se dava pelo conhecimento secreto (gnosis) que libertava a centelha divina aprisionada na carne.

Irineu de Lião, por exemplo, em sua obra Adversus Haereses (“Contra as Heresias”), combate vigorosamente esses sistemas. Ele denuncia as doutrinas do pleroma — termo técnico gnóstico que designa a plenitude das emanações divinas (aeons) a partir de um Deus transcendente — como mitologias heréticas. Contudo, ao mesmo tempo, Irineu preserva estruturas narrativas similares ao discurso gnóstico. Sua teoria da recapitulação (ἀνακεφαλαίωσις) — segundo a qual Cristo reencena e redime toda a história humana desde Adão — sugere uma economia cósmica da salvação, onde o Logos cumpre um percurso espiritual de retorno, não muito distinto das emanações e reintegrações do pleroma gnóstico.

O conceito de economia da salvação (oikonomia), originalmente uma noção administrativa do Império Romano, passa a ser utilizado pelos padres para descrever a organização do plano divino de salvação da humanidade. Irineu e os alexandrinos reinterpretam essa “economia” como um drama histórico-espiritual, que se desenvolve em etapas, sendo cada uma marcada por uma manifestação distinta do Logos. A semelhança com o esquema gnóstico de descida e retorno não é acidental: trata-se de uma reelaboração simbólica, teologicamente ortodoxa, de uma estrutura mítica pré-existente.

Clemente de Alexandria, mais conciliador, afirma que a verdadeira gnose é a fé racionalizada no interior da Igreja. Sua teologia se aproxima do ideal gnóstico ao propor que o “cristão perfeito” é o que alcança a epignosis, uma sabedoria superior, disponível apenas aos espiritualmente maduros. Como observa Elaine Pagels, “o gnosticismo não foi extinto pela ortodoxia cristã; foi, em parte, transformado em misticismo institucionalizado”.

2. O Catarismo e a persistência do dualismo

Nos séculos XI a XIII, o cristianismo ocidental foi impactado por um renascimento do dualismo gnóstico por meio do catarismo. Este movimento herético, amplamente difundido no sul da França e no norte da Itália, afirmava que o mundo material era criação de um princípio maligno (às vezes identificado como Satã, outras vezes como o demiurgo), enquanto o espírito humano era aprisionado em um corpo corrupto. A encarnação de Cristo, segundo os cátaros, não teria sido verdadeira — Jesus teria apenas parecido humano, em uma clara retomada do docetismo gnóstico.

Os cátaros rejeitavam o batismo infantil, os sacramentos e toda a autoridade eclesial romana. Sua ênfase em uma vida austera e espiritualmente pura (os bons homens ou perfecti) representava um cristianismo alternativo, em que a mediação institucional era desnecessária e até perniciosa.

A resposta da Igreja foi brutal: a cruzada albigense (1209–1229) e a posterior institucionalização da Inquisição visavam extirpar a heresia. No entanto, como demonstra Malcolm Lambert, a Igreja não apenas combateu o catarismo com repressão militar e judicial, mas também assimilou certos aspectos de sua espiritualidade, especialmente o ascetismo radical e a crítica à corrupção clerical.

É neste contexto que surgem e se consolidam as ordens mendicantes — franciscanos e dominicanos — como resposta institucionalizada à inquietação espiritual da época. Essas ordens adotaram a pobreza evangélica, a pregação itinerante e a crítica moral à opulência clerical, dialogando implicitamente com os valores cátaros, embora sem aderir ao seu dualismo. O franciscanismo inicial, em especial, representa uma tentativa da Igreja de “integrar o carisma subversivo” ao seu interior, canalizando o potencial revolucionário da espiritualidade gnóstica em direção à ortodoxia controlada.

Como argumenta Raoul Manselli, “as ordens mendicantes foram, em certo sentido, o antídoto e o herdeiro do catarismo: herdaram sua sensibilidade ética, mas a redirecionaram para a obediência institucional”.

3. Reforma Protestante: espiritualização e interiorização da salvação

Com a Reforma do século XVI, o cristianismo ocidental testemunhou um novo momento de apropriação — ainda que involuntária — de categorias gnósticas. Embora Lutero, Calvino e outros reformadores tenham afirmado sua fidelidade à Escritura e combatido as “heresias antigas”, a ruptura com a mediação eclesiástica e sacramental acabou por produzir uma espiritualidade cada vez mais interiorizada, subjetiva e não-material — em consonância com o ethos gnóstico.

A doutrina calvinista da depravação total e da predestinação absoluta contribui para uma leitura antropológica extremamente negativa da carne e da vontade humana. A graça se torna um mistério interiorizado, perceptível apenas na consciência individual, sem mediações ritualísticas ou comunitárias. Essa interiorização da salvação, aliada à rejeição do culto visível, aproxima o protestantismo de uma “espiritualidade de essência” — típica das seitas gnósticas.

Como nota Gershom Scholem, “toda religião que elimina as mediações simbólicas do mundo em nome de um acesso direto ao divino incorre, mesmo que não perceba, em uma estrutura gnóstica”.

Esse fenômeno se intensificou com os movimentos anabatistas, pietistas e espiritualistas radicais, que enfatizavam a experiência direta do Espírito, a comunhão invisível dos santos e a desconfiança em relação à instituição. A ideia do “cristão invisível”, da “igreja verdadeira oculta” e da rejeição do mundo visível (inclusive da ética política e eclesial) espelha a velha tensão gnóstica entre a luz interior e o mundo exterior corrompido.

4. Gnose secular e protestantismo moderno

A partir da modernidade, particularmente com o Iluminismo e a secularização progressiva da cultura ocidental, observa-se uma transposição do imaginário gnóstico para formas laicas de espiritualidade interior. A dessacralização do mundo, a rejeição de tradições externas e a ênfase no “eu autêntico” como fonte de verdade reificam a estrutura gnóstica em termos psicológicos e existenciais.

Charles Taylor, em Uma Era Secular, argumenta que a modernidade cria “condições de crença” nas quais a fé deixa de ser uma referência pública e encarnada, passando a ser uma escolha íntima, subjetiva, desinstitucionalizada. Nessa lógica, o corpo, o rito, o tempo e o espaço são esvaziados de sua dimensão sagrada — restando apenas o sujeito e sua experiência interior como locus da verdade.

Esse “protestantismo secularizado” absorve a lógica gnóstica: rejeita o mundo como meio de salvação, desconfia da carne como portadora de sentido e eleva a experiência subjetiva como único critério de realidade espiritual.

IV. A ressonância fonética do gnosticismo na cristandade moderna: um eco protestante

É comum que, mesmo entre estudiosos da teologia e da história do cristianismo, o gnosticismo seja percebido como um fenômeno remoto, confinado aos primeiros séculos da era cristã. Contudo, a realidade é mais inquietante: os ecos conceituais e discursivos do gnosticismo continuam reverberando — de forma tênue, porém audível — na paisagem da cristandade moderna. Este quarto movimento de nosso estudo pretende evidenciar essas ressonâncias, focalizando especialmente o universo protestante, onde o vocabulário, as práticas e os discursos religiosos frequentemente revelam sintomatologias que remetem à estrutura mítica e à teologia gnóstica, mesmo que de modo inconsciente ou não assumido.

1. A fonética da salvação não mediada: a gnose como fé interior

No coração do gnosticismo está a ideia de que a salvação é fruto de um conhecimento interior, não necessariamente racional, mas existencial: a consciência de que o ser humano traz dentro de si uma centelha divina aprisionada, que precisa ser libertada por meio de uma revelação íntima. Esse discurso, ao longo da história, foi se disfarçando de espiritualidade pessoal, experiência de conversão ou iluminação interior — e é aí que mora o paralelo mais explícito com o protestantismo moderno.

A ênfase protestante na experiência individual, na “certeza da salvação” como fruto de uma convicção íntima, na “voz de Deus que fala ao coração” — tudo isso constrói um cenário fonético onde a gramática do gnosticismo é novamente pronunciada, mesmo quando travestida de ortodoxia bíblica. A recusa à mediação sacramental, a desvalorização do rito eclesial e a minimização da tradição como via de fé criam um campo simbólico que ecoa a proposta gnóstica de redenção “por dentro” e “sem intermediações”.

Essa interiorização absoluta da fé, quando não acompanhada de uma teologia encarnacional robusta, resulta num cristianismo etéreo, subjetivo, muitas vezes indiferente à materialidade histórica da fé. Como alerta Hans Jonas, “a gnose é, por definição, hostil à encarnação — sua salvação se dá por fuga do mundo, não por sua redenção”.

2. A recusa do corpo e do mundo: a estética dualista da espiritualidade moderna

Um segundo traço fonético gnóstico na cristandade protestante é a desconfiança em relação ao corpo, à estética, à arte e ao prazer — expressões que são vistas, muitas vezes, como ameaças à santidade. Essa aversão ao sensível, embora travestida de ascetismo bíblico, carrega o mesmo arcabouço simbólico do dualismo gnóstico: o corpo é o cárcere da alma, e o mundo visível é perigoso por natureza.

Muitas vertentes do evangelicalismo moderno manifestam essa tendência: censuram a arte sacra, reduzem a liturgia ao mínimo funcional, reprimem expressões corporais de religiosidade e substituem a comunhão ritual por “cultos” onde a experiência emocional interior é o único critério de espiritualidade. A fonética gnóstica se expressa, nesse caso, por meio de um vocabulário que opõe carne e espírito, visível e invisível, forma e essência — tal como o antigo discurso gnóstico fazia, ainda que com novos termos.

Além disso, o imaginário apocalíptico cultivado em diversos círculos protestantes, que anseiam pela “escatologia do arrebatamento” e por uma fuga do mundo para os “lugares celestiais”, reforça a ideia de que o mundo material está condenado, e a única salvação possível é sua negação. A esperança não é a transfiguração do mundo, mas sua aniquilação.

3. O elitismo espiritual: a igreja dos “escolhidos”

Outro traço fonético relevante está na doutrina da eleição — especialmente nas formas calvinistas mais rígidas, onde os “escolhidos” são predestinados à salvação, enquanto os demais seguem para a perdição. Ainda que se pretenda bíblica, essa estrutura teológica facilmente degenera em uma teologia de castas espirituais, onde a comunidade dos salvos se vê como portadora de uma verdade inatingível aos demais.

O paralelo com o gnosticismo é claro: também ali existiam os “pneumáticos” (espirituais), destinados à salvação, em contraste com os “psíquicos” e “hiléticos” (materiais), condenados à ignorância e à destruição. A retórica de que só os “verdadeiros crentes” compreenderão a mensagem de Deus — enquanto o resto do mundo permanece em trevas — reproduz a fonética do saber oculto, acessível apenas a uma elite espiritual. É a linguagem da “igreja invisível”, da revelação subjetiva, da eleição insondável — tudo isso pronunciado com os fonemas da antiga gnose.

A cultura dos testemunhos pessoais, das experiências místicas intransferíveis e da validação da fé pela intensidade da convicção pessoal reforça essa estrutura. Como observa Harold Bloom, “o protestantismo americano é, em seu cerne, um gnosticismo sem mito — uma experiência religiosa individualista que substituiu a narrativa sagrada por vivências pessoais de salvação”.

4. A gramática da separação: o mundo como ameaça e a fé como bunker

Por fim, a lógica separatista de muitos grupos protestantes — seu desejo de se proteger do mundo, da cultura, da política, da ciência — reflete o medo gnóstico da contaminação. A fé é concebida como refúgio, o mundo como campo de batalha onde tudo está contaminado: a arte é mundana, a ciência é laica, a filosofia é suspeita, o Estado é inimigo. Essa gramática de medo e defesa lembra a velha paranoia gnóstica diante do cosmos criado pelo demiurgo: é necessário escapar, fugir, construir muros espirituais.

Não se trata apenas de uma posição ética ou teológica, mas de uma estrutura imaginária que funda o discurso da fé. O “mundo” é sempre “outro”, e a comunidade dos salvos é uma ilha de pureza. Nessa lógica, o cristão não é mais testemunha no mundo, mas sobrevivente dele.

Essa teologia de bunker tem implicações pastorais sérias: a fé se torna um projeto de pureza, a comunidade vira gueto e a missão se transforma em pregação para os “nossos”, não em presença transformadora no mundo. Como afirma Dietrich Bonhoeffer, “a Igreja que foge do mundo não é mais sal da terra; é apenas uma comunidade religiosa qualquer”.

5. Por um cristianismo agnóstico: a encarnação contra a gnose

À luz das análises anteriores, urge perguntar: como é possível um cristianismo que não seja gnóstico? Essa interrogação, provocativa em sua formulação, é um convite à superação de uma fé escapista, espiritualizada e metafísica — que mais se assemelha aos constructos da gnose do que à rude concretude do Nazareno. É possível, ainda hoje, professar um cristianismo que se emancipe das estruturas gnósticas, mesmo após séculos de assimilação simbólica, discursiva e institucional?

Para Dietrich Bonhoeffer, a resposta encontra-se numa fé que recuse o “Deus-das-lacunas” e abrace o mundo adulto, reconciliado com sua finitude, contradições e história. Em suas cartas da prisão, Bonhoeffer propôs um “cristianismo arreligioso”, onde a presença de Deus se dá não nas soluções metafísicas, mas na participação no sofrimento humano: “Deus se deixa expulsar do mundo até a cruz” (Widerstand und Ergebung, 1951). Trata-se de recuperar, radicalmente, o escândalo da encarnação — não como um fato doutrinário, mas como princípio hermenêutico.

É esse o caminho indicado por Johann Baptist Metz ao denunciar a “amnésia do sofrimento” (Metz, Memória passionis, 2006). Para Metz, o cristianismo moderno tornou-se culpado de uma abstração teológica que rompeu com a história dos vencidos. Uma fé que esquece as vítimas do tempo — as chagas abertas da história — torna-se funcional ao sistema. O antídoto, diz Metz, está numa mística da compaixão, enraizada na memória da paixão, que impede a sacralização da ordem estabelecida.

A proposta de um cristianismo agnóstico, aqui, não é a negação da fé, mas sua purificação crítica. É um chamado ao abandono das certezas gnósticas — dualistas, elitistas, escapistas — e à imersão no drama da existência. Nesse sentido, Paul Tillich propõe o “coragem de ser” como ato de fé frente ao nada, à dúvida e à tragédia. Para Tillich, Deus não está acima do sofrimento, mas no centro do abismo existencial, como fundamento do ser.

Jürgen Moltmann, por sua vez, oferece em O Deus crucificado (1972) uma teologia da esperança que se ancora na experiência da cruz. A cristandade, diz Moltmann, precisa redescobrir o Cristo sofredor como o rosto visível do Deus que se compromete com os abandonados. Isso significa rejeitar uma cristologia de glória e adotar uma cristologia da compaixão, onde Deus se revela na vulnerabilidade.

Leonardo Boff, em sintonia com esses autores, propõe que a fé cristã se materializa na vivência histórica da justiça e da solidariedade. Em Jesus Cristo Libertador (1972), Boff defende a inserção da teologia no chão da realidade latino-americana, como forma de encarnar o Verbo em meio aos crucificados de hoje. Não se trata de negar o mistério, mas de recusá-lo como desculpa para a indiferença.

Por fim, Martin Luther King Jr., em sua práxis pastoral e política, testemunha um cristianismo encarnado que desafia os poderes gnósticos da segregação, do racismo e da violência. Sua teologia — pública, afetiva e ativa — testemunha que a encarnação é um chamado à desobediência criativa frente aos impérios.

Um cristianismo agnóstico, portanto, não é a negação da fé, mas a negação da gnose. Ele se constrói no corpo, na carne, no sangue, no risco. É o seguimento de um Cristo que não fugiu do mundo, mas nele entrou até o fim, até a cruz. E a cruz — ao contrário do pleroma gnóstico — é o lugar onde Deus se esvazia, e não se exalta. Onde Deus se faz humano, e não se distancia.

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