Entre Judá e Cristo: Uma Análise Teológica da Expulsão do Jardim e suas Implicações para a Fé Cristã
EXÓRDIO – Quando a teologia começa em casa: entre o espanto e o silêncio
Foi em um momento corriqueiro, quase despretensioso, que uma série de questões fundamentais sobre a tradição bíblica vieram à tona. Meu filho, com apenas 12 anos, decidiu iniciar a leitura do livro de Gênesis por conta própria. Em poucos dias, vieram as perguntas — tão simples quanto devastadoras:
- “Pai, por que as águas estavam acima dos céus?”
- “Se é Deus quem fala, por que a Bíblia diz ‘façamos o homem’?”
- “Deus disse que se comessem do fruto morreriam, mas eles só foram expulsos... por quê?”
- “E por que Deus colocou querubins para guardar a árvore depois da expulsão, e não antes?”
Essas questões, surgidas no ambiente mais íntimo e afetivo possível, não apenas apontam para uma curiosidade infantil legítima, mas também desvelam uma lacuna formativa no campo religioso e teológico. São perguntas fundadas não em ceticismo militante, mas em leitura atenta — e, talvez por isso mesmo, tão perigosas aos olhos dos que, adultos, se calam.
Não se trata de dúvidas inéditas. Elas atravessam séculos de interpretação, apologética e silêncio cúmplice. No entanto, quando vêm de uma criança, carregam o peso da revelação: o texto bíblico não é um espelho da realidade, mas uma construção cultural, política e religiosa situada histórica e ideologicamente.
Como sustentou Frank Crüsemann, o Antigo Testamento é “uma forma de poder social”, e seus escritos “são tanto reações quanto projetos” frente às transformações sociopolíticas de Israel (CRÜSEMANN, 2003). Perguntas como as de meu filho não apenas exigem respostas — elas desestabilizam o pacto de silêncio que sustenta o uso ideológico da Bíblia em diversos espaços religiosos e escolares.
Mais do que exegese, este artigo é uma tentativa de responder à inquietação de quem lê com atenção, mas sem medo. A partir de uma análise pontual dos textos de Gênesis 2:16–17 e 3:21–24, pretendemos demonstrar que as tensões, contradições e reinterpretações ali contidas refletem não uma falha textual, mas a própria natureza polissêmica, redacional e disputada do texto bíblico.
É nesse contexto que propomos o conceito de uma “teologia de trincheiras”: não como apologia, mas como enfrentamento crítico, que compreende o texto bíblico como discurso religioso historicamente situado — e não como voz inquestionável de uma divindade absoluta.
Seção II – Complexidade redacional e disputas no texto de Gênesis: uma leitura histórico-social
A narrativa que envolve a criação do ser humano, sua relação com a árvore do conhecimento e a subsequente expulsão do Éden carrega em si uma profunda complexidade literária e histórica. Não estamos diante de um relato único, escrito por um autor inspirado em transe místico, mas de uma colcha de retalhos teológicos cuidadosamente costurada ao longo de séculos por diferentes escolas e tradições, cada qual com seus interesses e pressupostos teológicos, políticos e sociais.
1. Estrutura composta e presença de múltiplas tradições
A identificação do nome divino YHWH Elohim (יְהוָה אֱלֹהִים) é um dos primeiros indícios da composição híbrida. Conforme os estudos clássicos da Hipótese Documentária, atualizada por autores como Rolf Rendtorff, Erich Zenger e Frank Crüsemann, o Pentateuco é resultado da fusão de ao menos quatro tradições principais: javista (J), eloísta (E), deuteronomista (D) e sacerdotal (P).
O uso do composto YHWH Elohim parece indicar uma tentativa de harmonizar duas tradições: uma mais antropomórfica e narrativamente vívida (javista) e outra mais abstrata e ritualística (sacerdotal). Isso nos mostra que o texto não é neutro nem espontâneo: ele resulta de negociações religiosas entre elites, sobretudo no período pós-exílico, quando o retorno do povo judeu à Palestina exigia uma redefinição da identidade nacional e religiosa.
2. A disputa pelo sagrado: morte física ou exclusão do sagrado?
A tensão entre a ameaça de morte (Gênesis 2:17) e a real consequência da transgressão (a expulsão do Éden, em Gênesis 3:24) não é um erro ou contradição narrativa, mas uma construção teológica deliberada. Ao afirmar que “certamente morrerás” e, depois, não executar a morte, mas impor a expulsão e impedir o acesso à árvore da vida, o texto oferece uma reformulação teológica do que é “morte”: não mais a morte biológica, mas a perda do acesso ao espaço sagrado — símbolo do pertencimento ao divino e à ordem cósmica.
Essa mudança conceitual está fortemente ligada ao pensamento sacerdotal do Segundo Templo, em que a centralização do culto em Jerusalém e o controle do acesso ao Templo representavam, de fato, vida ou morte para o povo. Como destacam autores como Milton Schwantes e Haroldo Reimer, “viver” era estar em aliança com o Deus do Templo; ser excluído era experimentar a morte no plano social e religioso.
3. A árvore da vida como símbolo cultual
A árvore da vida (עֵץ הַחַיִּים), impedida de ser acessada após a transgressão, é interpretada por muitos estudiosos como símbolo do sagrado centralizado. Carlos Mesters e Norman Gottwald sugerem que o Éden, neste sentido, se aproxima da ideia de um “santuário primitivo”, uma representação mítica do espaço onde a divindade habita com o humano.
A expulsão do Éden e o fechamento do acesso à árvore da vida com querubins e uma espada flamejante (Gênesis 3:24) são ecos visíveis das descrições do Santo dos Santos no Templo de Jerusalém, onde querubins guardam o trono divino (cf. Êxodo 25:18–22). Isso revela que o texto possui intencionalidade cultual: ele descreve uma geografia simbólica que reproduz o espaço do Templo, sugerindo que o verdadeiro acesso à “vida” ocorre somente mediado pelo sacerdócio e pela instituição religiosa legitimada.
4. A crítica do sacrifício e os ecos de Caim e Abel
A cena em que Deus “faz túnicas de peles” (Gn 3:21) pode ser lida como um primeiro indício de sacrifício animal, prática que será sistematizada posteriormente em textos sacerdotais como o livro de Levítico. A referência, sutil, remete ao debate posterior que culminará no relato de Caim e Abel (Gn 4), onde já se esboça uma preferência pelo sacrifício animal em detrimento do vegetal, prenúncio da teologia do templo e da mediação sacerdotal via sangue.
Essa leitura é sustentada por autores como Israel Finkelstein, que destacam a ausência de vestígios arqueológicos de um culto centralizado nos tempos atribuídos a Adão, e por isso sugerem que tais textos refletem projeções retroativas de uma teologia sacerdotal pós-exílica, em disputa com formas mais antigas e populares de religiosidade, baseadas em oferendas não sangrentas e vínculos familiares, e não institucionais.
O que emerge de todas essas considerações é a impossibilidade de uma leitura “inocente” da narrativa da queda. Estamos diante de um texto redacionalmente composto, teologicamente tensionado e socialmente situado. A estrutura do texto reflete a disputa entre concepções distintas de divindade, sacralidade e humanidade.
A narrativa da expulsão do Éden funciona como uma poderosa alegoria teológica, que busca justificar a mediação sacerdotal como via exclusiva de retorno ao sagrado. O drama da “morte” e da “vida” é menos biológico e mais político: quem detém o acesso ao divino, e quem o regula?
É sobre essa base que, na próxima seção, analisaremos os termos hebraicos, as construções verbais e sintáticas que sustentam esse aparato teológico, a fim de aproximar-nos ainda mais das intenções e ambiguidades presentes na matéria textual original de Gênesis 2:16–17 e 3:21–24.
III. A composição literária e a multiplicidade de tradições: Elohista, Javista e Sacerdotal
A narrativa de Gênesis 2:16–17 e 3:21–24 não pode ser compreendida de forma homogênea ou unívoca. Ela é fruto de um entrelaçamento complexo de tradições literárias que refletem diferentes momentos históricos, teológicos e ideológicos do antigo Israel. A tensão entre o uso dos nomes Elohim (Deus) e YHWH (Senhor) já denuncia que há múltiplas mãos redatoras e múltiplas cosmovisões em jogo. Na perspectiva clássica da crítica das fontes, identificam-se três tradições principais presentes nessas passagens: a tradição eloísta, a javista e a sacerdotal, cada qual com seus interesses e sua teologia particular.
A tradição javista (J), geralmente datada do período monárquico unificado (século X a.C.), apresenta uma divindade próxima, que forma o ser humano com as próprias mãos (Gn 2:7), que “planta” um jardim, que “anda” entre as árvores e que se dirige diretamente aos personagens com linguagem antropomórfica. A ênfase dessa tradição recai sobre a relação íntima entre Deus e a criação, sobretudo com a humanidade. É dessa fonte que vem a proibição do fruto da árvore do conhecimento e o subsequente diálogo com Adão e Eva. O uso do termo YHWH Elohim nesta seção pode indicar uma fusão já operada por redatores posteriores entre a tradição javista e outra fonte, como a eloísta (E), marcada por uma concepção mais transcendente de Deus.
A tradição eloísta, que se desenvolve sobretudo no reino do Norte, atribui a Deus um caráter mais distante e comunicativo por meio de sonhos, anjos e mediadores. Embora o nome Elohim apareça em Gênesis 1, é possível que alguns ecos dessa tradição também tenham influenciado a forma final das narrativas de Gênesis 2 e 3, ainda que de modo secundário.
Por sua vez, a tradição sacerdotal (P), datada do exílio babilônico ou do pós-exílio, é identificada pela ênfase em estruturas, genealogias, rituais e no papel central do culto. Não é à toa que, em Gênesis 3:21, Deus “faz roupas de peles” para Adão e Eva, um gesto que pode ser lido como uma alusão ritualística ou sacrificial, ecoando práticas do templo. Diversos estudiosos — como Frank Crüsemann, Milton Schwantes e Erich Zenger — veem nesse gesto um prenúncio da teologia do sacrifício substitutivo: o pecado exige mediação, cobertura, rito. É possível ainda que o uso de peles esteja conectado à crítica sacerdotal contra ofertas vegetais (como a de Caim), em favor do sacrifício animal (como o de Abel), dando voz à disputa litúrgica presente no próprio texto.
A análise desses três fios literários indica que o texto de Gênesis, longe de ser um relato monolítico, é um verdadeiro palimpsesto teológico, que articula e rearticula a tradição religiosa israelita em contextos históricos distintos. Essa multiplicidade de fontes não enfraquece a narrativa; pelo contrário, é justamente ela que confere à Bíblia a densidade de sua linguagem simbólica e a riqueza de sua mensagem. Compreender essa composição é essencial para acessarmos o próximo passo: o processo histórico de redação e instrumentalização do texto, especialmente em períodos de crise nacional e reconfiguração teológica.
IV. Redação, instrumentalização e disputas teológicas no pós-exílio
A compreensão plena da narrativa de Gênesis 2:16–17 e 3:21–24 requer o deslocamento do leitor para o contexto histórico da redação e instrumentalização final desses textos: o período pós-exílico. É neste cenário de retorno a Jerusalém, reconstrução identitária e disputa pelo poder religioso que a composição final do Pentateuco — particularmente as seções ligadas à tradição sacerdotal — adquire sua fisionomia definitiva.
Após o exílio babilônico (586 a.C.), as elites judaicas retornadas da Mesopotâmia enfrentaram o desafio de reconstituir uma identidade nacional e religiosa que havia sido dilacerada. Como observa Rolf Rendtorff, esse momento marca uma reconfiguração da tradição oral em textos escritos, muitos dos quais foram sistematizados sob a perspectiva da elite sacerdotal de Jerusalém. É neste momento que se percebe a consolidação do material sacerdotal (P) como eixo estruturante da Torá, inclusive moldando narrativas mais antigas (J e E), reinterpretando-as à luz das necessidades ideológicas do pós-exílio.
Nesse contexto, a redação da narrativa da expulsão do Éden deve ser lida menos como descrição mítica da origem da humanidade, e mais como um tratado teológico com fortes implicações sociais. A menção à “árvore da vida” (Gn 3:22) e à expulsão preventiva do casal para que não dela se alimentassem revela uma preocupação com os limites do humano diante do divino. Como nota Erich Zenger, esse gesto de expulsão revela um Deus que delimita o espaço sagrado — a vida eterna — e impede o ser humano de adentrá-lo após o pecado. Contudo, essa delimitação pode ser vista também como um reflexo da organização do espaço cultual em Jerusalém, no qual somente os sacerdotes poderiam se aproximar do “santo dos santos”, um espaço de vida e mediação entre Deus e o povo.
A elaboração da ameaça (“certamente morrerás”) seguida de uma não-ocorrência literal da morte — substituída por uma expulsão e posterior vestimenta com peles — adquire nesse contexto um caráter doutrinal. Milton Schwantes e Haroldo Reimer interpretam esse gesto como uma pedagogia do limite: o ser humano ultrapassa o interdito e é por isso afastado do espaço sagrado, mas não aniquilado. A morte é, portanto, a separação do humano da vida plena com Deus, e não necessariamente a cessação imediata da vida biológica.
Outro elemento essencial desse contexto é a utilização dos textos como instrumentos de controle litúrgico e doutrinário. Como argumenta Frank Crüsemann, a Torá deixa de ser apenas narrativa para se tornar constituição teológica e sociopolítica. A roupa de peles dada por Deus (Gn 3:21) pode ser entendida, à luz do culto sacrificial, como uma antecipação do sacerdócio levítico, responsável por mediar a transgressão humana por meio de ritos de sangue. A referência implícita à morte de um animal (ainda que não descrita literalmente) pode ecoar uma crítica contra os grupos que, como os agricultores de Canaã, priorizavam ofertas vegetais — como o fará posteriormente o episódio de Caim e Abel. A voz sacerdotal, assim, se impõe como normativa.
O próprio fechamento do acesso à árvore da vida, com querubins e espada flamejante, pode ser lido como alusão direta ao portão oriental do templo, cuja entrada era proibida aos leigos. O sagrado torna-se território interditado, e o humano passa a precisar de mediações cultuais — vestimentas, sacrifícios, sacerdotes — para reencontrar-se com a divindade. É esta lógica que sustenta o argumento de Norman Gottwald sobre a instrumentalização da religião em função da reestruturação de um Estado teocrático, que une fé e centralização do poder em torno do templo.
Dessa forma, a narrativa da queda e da expulsão do Éden é mais do que uma etiologia do sofrimento humano. Trata-se de um texto de resistência, de organização e de imposição ideológica num momento em que diferentes grupos disputavam o significado da identidade israelita. A Bíblia, portanto, não é um livro homogêneo nem neutro, mas um campo de batalha simbólico, onde tradições, escolas e interesses se chocam e se impõem. Esse reconhecimento nos prepara para a análise final, onde confrontaremos o lugar da “morte” no discurso bíblico com sua função pedagógica, política e religiosa.
V. Morte simbólica, pedagogia do limite e construção ideológica
A advertência divina em Gênesis 2:17 — “certamente morrerás” — sugere, à primeira vista, uma sentença literal de morte imediata. No entanto, ao longo do relato bíblico, o que ocorre não é a morte física imediata, mas a expulsão do jardim, a separação do humano da presença divina e o afastamento da árvore da vida. Assim, a "morte" referida na narrativa assume um caráter simbólico e existencial, compreendida como ruptura da comunhão com o divino e inserção definitiva da humanidade na condição de limite, fragilidade e exílio.
Essa dinâmica simbólica tem sido amplamente discutida por autores como Frank Crüsemann, Milton Schwantes e Haroldo Reimer, que reconhecem no relato uma construção teológica que emerge de uma situação de crise, especialmente o período pós-exílico. Nesse contexto, o relato do Gênesis opera como uma pedagogia do limite: apresenta-se como fundamento teológico para a condição humana marcada pela dor, pelo trabalho forçado e pela perda do espaço sagrado.
A morte simbólica marca o fim da autonomia plena do ser humano e inaugura a necessidade da mediação religiosa. O humano é lançado fora do Éden, e a árvore da vida é guardada por querubins armados (Gn 3:24), estabelecendo-se uma barreira entre o sagrado e o profano, entre o homem e a vida eterna. Como nota Gottwald, o templo, o sacerdote e a Lei surgem historicamente como os mecanismos de acesso controlado à presença divina — uma reinterpretação política e teológica do Éden perdido.
A menção às “peles” fornecidas por Deus para cobrir o humano (Gn 3:21) pode remeter — como sugerem Schwantes e Mesters — a uma referência cultual, em que o abate de animais assume valor sacrificial. Tal gesto não apenas antecipa os rituais do templo de Jerusalém, como também sublinha a transição da nudez da inocência para o reconhecimento da culpa, requerendo cobertura mediada por sacrifício. A teologia sacerdotal encontra aqui um recurso simbólico para afirmar a legitimidade de sua função mediadora.
Ao tratar a morte como exclusão e não como aniquilação, o texto fundamenta a ideologia da necessidade de mediação: o ser humano precisa da Palavra, da Lei e do Sacerdote. O pecado não mata fisicamente, mas interrompe a relação direta com o divino — criando espaço para o papel das instituições religiosas. Como afirma Crüsemann, o texto é menos relato de um passado distante e mais uma tentativa de legitimar o presente estrutural do templo e da Lei como vias exclusivas de reconciliação.
Em suma, a narrativa da “morte” que não ocorre literal e imediatamente é, na verdade, uma sofisticada construção teológica e política que redefine a vida humana, legitima a autoridade religiosa e desenha uma antropologia que nasce da ruptura e da necessidade de retorno mediado ao sagrado. A leitura histórico-social da passagem permite desvendar o fundo ideológico da “sentença”, resgatando sua função como literatura de resistência, reorganização e controle teológico num contexto de trauma nacional e reorganização étnico-religiosa.
VI. Considerações Finais – Teologia de Trincheiras: entre a complexidade do texto e a radicalidade do humano
A análise de Gênesis 2:16–17 e 3:21–24 revelou não apenas as camadas redacionais e teológicas de uma narrativa que sobrevive ao tempo, mas também a forma como ela foi — e ainda é — instrumentalizada em diferentes contextos históricos, políticos e religiosos. O suposto mandamento que decretava a morte imediata como consequência do acesso ao conhecimento não produziu um fim abrupto da vida, mas instaurou um processo: a entrada do ser humano em um mundo marcado pela ausência do sagrado imediato, pelo trabalho, pela dor e pelo exílio.
O texto bíblico, ao afirmar que Deus vestiu Adão e Eva com túnicas de peles, ao expulsá-los do jardim e ao colocar querubins como guardiões da árvore da vida, reafirma não apenas um sistema simbólico, mas uma ordem socioteológica que legitima o distanciamento humano da plenitude e o surgimento da mediação cultual. Como já observado, tais elementos encontram eco na teologia do templo, na função sacerdotal e no ethos pós-exílico, em que o povo de Israel precisava redefinir sua identidade à sombra da perda da terra, do templo e da monarquia.
Ao confrontarmos o “morrerás” com o “expulsos”, entendemos que o texto opera numa lógica própria, e não linear: a morte é, aqui, a suspensão da eternidade, a condenação à finitude e à dependência. É a morte enquanto descontinuidade da comunhão direta com o divino, enquanto necessidade de um novo caminho de retorno. A árvore da vida, agora inacessível, só poderá ser reencontrada no horizonte escatológico, como assinala Apocalipse 22 — ou, para os leitores críticos, jamais será recuperada, pois foi sempre símbolo de um desejo que se tornou interdito.
É nesse cenário, onde o texto sagrado se revela como construção histórica, que emerge o que chamamos de teologia de trincheiras. Esta não é uma teologia confortável, nem de gabinete. Não se nutre de certezas infalíveis, mas de perguntas difíceis — aquelas que surgem da boca de um adolescente de 12 anos e que colocam adultos e teólogos diante do abismo do texto. Perguntas que não buscam preservar a estabilidade do dogma, mas tensionam o sentido, desestabilizam o literalismo e expõem o leitor à responsabilidade de interpretar com honestidade.
A teologia de trincheiras nasce do chão da existência, enfrentando sem escudos a tensão entre fé e crítica, entre revelação e linguagem, entre tradição e política. Ela não foge das disputas redacionais entre a escola javista e a sacerdotal, entre o Deus do “façamos” e o Deus do templo. Tampouco ignora o uso ideológico do texto no contexto pós-exílico. Pelo contrário: assume que a Bíblia é literatura teológica, produzida por comunidades em conflito, escrita em tempos de crise, e moldada para responder a anseios identitários, espirituais e políticos.
Neste sentido, a teologia de trincheiras se opõe à leitura acrítica, despolitizada e literalista. Ela convida o leitor a ir às margens do Éden — ali onde os querubins foram postos — e questionar: quem os colocou ali? A quem interessa manter o caminho interditado? Quem lucra com a interdição da árvore da vida?
Diante disso, nosso chamado não é à defesa cega de textos que são, por natureza, ambíguos e polissêmicos, mas à construção de uma teologia que, mesmo nas trincheiras da crítica e da história, busca ainda dialogar com a radicalidade do humano e com o mistério do sagrado.
Pós-escrito – Entre Judá e Cristo: a fé sob tensão
As narrativas do Gênesis analisadas ao longo deste artigo revelam, em sua tessitura, não apenas uma cosmovisão teológica antiga, mas também o projeto de uma comunidade sacerdotal que pretende organizar, controlar e administrar o acesso ao sagrado. A árvore da vida, os querubins armados, a expulsão do jardim e as túnicas de pele apontam para uma sacralidade mediada, filtrada e, sobretudo, institucionalizada. Trata-se de uma teologia de Judá, nascida no Sul, consolidada no pós-exílio e estruturada em torno do templo, da linhagem, do sacrifício.
A pergunta que emerge é inevitável: se o relato bíblico foi moldado por essas mãos sacerdotais, que tipo de espiritualidade ele propõe e perpetua?
Ao longo da história, a fé cristã — herdeira das escrituras hebraicas — muitas vezes reiterou essa mesma lógica. O templo foi reerguido sob outras formas; os sacerdotes voltaram a mediar; os altares se encheram novamente de sacrifícios simbólicos. Ainda que com nova roupagem, o sistema sacrificial do Sul sobreviveu na estrutura das igrejas e na teologia do medo.
Mas há uma ruptura que precisa ser lembrada.
Quando Jesus — judeu galileu, sem status sacerdotal — chama Deus de Abba, ele não apenas redefine a linguagem da fé: ele subverte a mediação. Quando recomenda ao orante que “entre no seu quarto, feche a porta e ore ao Pai em secreto” (Mt 6,6), Jesus desautoriza o templo como único lugar de encontro com o divino. A presença de Deus desloca-se do sacro oficial para o cotidiano escondido. A fé deixa de ser monopólio dos ritos e se torna prática dos vínculos.
Nesse gesto, o Cristo rompe com o padrão de Judá. E a pergunta, portanto, se torna aguda:
A fé cristã moderna tem mais de Judá ou mais de Cristo?
Se a fé for medida por sua institucionalização, seu apego a dogmas, castas e exclusões, então, ainda está presa ao paradigma do templo de Jerusalém. Mas se for vivida como experiência libertadora, como encontro com o Deus que não exige pureza ritual, mas disposição de escuta, então ainda há esperança de que ela caminhe com Cristo — fora do acampamento, fora do Éden, fora do templo.
Essa é a tensão entre Judá e Cristo. E é nela que, talvez, a fé precise nascer novamente.

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