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A Morte de Josias: Contradições Canônicas e Disputas Sacerdotais em Reis e Crônicas

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Exórdio: A confiabilidade da Bíblia à prova de Megido É comum, sobretudo nos ambientes religiosos de forte apelo retórico, a tentativa de sustentar a Bíblia como “o livro mais confiável do mundo” com base em slogans apologéticos e estatísticas de circulação editorial. Ainda hoje, em pleno avanço do secularismo acadêmico e da crítica histórica, multiplicam-se vídeos de pregadores que se gabam de enfrentar grupos de ateus “despreparados”, alardeando vitórias argumentativas sem qualquer compromisso com o rigor metodológico da teologia crítica ou da epistemologia laica. O problema emerge quando essa pretensa confiabilidade do texto bíblico é confrontada não com os céticos externos à tradição, mas com o próprio conteúdo interno das Escrituras — especificamente, com seus relatos múltiplos, tensionados e por vezes contraditórios. Um exemplo paradigmático é a narrativa da morte do rei Josias, registrada em dois livros...

O LABORATÓRIO DE TEOLOGIA: Uma Teologia Crítica na Fronteira das Ciências da Religião

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Introdução Em muitos círculos populares, a teologia ainda é percebida como uma espécie de “catequese de luxo” — um saber devocional, subjetivo e desprovido de critérios científicos. Tal visão, além de equivocada, ignora o fato de que a Teologia é reconhecida oficialmente pelo Ministério da Educação (MEC) como uma ciência pertencente ao campo das Ciências Humanas. Esse reconhecimento não apenas legitima sua presença acadêmica, mas também a submete às exigências de rigor metodológico que caracterizam qualquer empreendimento científico sério. Dizer que a teologia é ciência significa, antes de tudo, afirmar que ela não se ocupa de “Deus” como entidade metafísica acessível ao método empírico, mas sim dos discursos humanos que constroem, interpretam e reinterpretam essa figura nas mais diversas tradições culturais e religiosas. Em outras palavras, a teologia é o estudo sistemático e crítico do que a humanidade diz ser Deus (ou deus), com especial atenção às mediações te...

Leão XIV: Entre o Proletariado, o Neoplatonismo e a Inteligência Artificial – As Diretrizes de um Pontificado Inusitado

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O que esperar do pontificado de Leão XIV? O que esperar do pontificado de Leão XIV? A eleição de Leão XIV para o trono de Pedro já carrega, por si só, um conjunto instigante de sinais e contrastes que ajudam a projetar os contornos de um pontificado potencialmente decisivo para o futuro da Igreja em tempos de transformações tecnológicas, sociopolíticas e teológicas. A começar pelo nome: Leão XIV . O papa recém-eleito afirma que a escolha é uma homenagem direta a Leão XIII , pontífice do final do século XIX que buscou estabelecer um diálogo com a modernidade, sendo autor da encíclica Rerum Novarum , marco da Doutrina Social da Igreja. Ao evocar esse legado, Leão XIV sinaliza seu compromisso com uma Igreja que se debruça sobre a realidade do trabalho, da justiça social e da dignidade da pessoa humana — elementos fundamentais para qualquer reflexão teológica no século XXI. No entanto, sua origem também chama a atenção: estadunidense , com filiação ante...

Cristianismo Sem Mãe: Gnose, Encarnação e a Ausência de Maria na Fé Moderna

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EXÓRDIO – “Mulher, e não mãe?” Poucos personagens são tão reverenciados na tradição cristã quanto Maria de Nazaré. Venerada como a Theotokos (Mãe de Deus) desde o Concílio de Éfeso (431 d.C.), sua imagem consolidou-se como arquétipo da mãe abnegada, silenciosa, entregando seu filho à missão divina. É justamente por isso que um detalhe linguístico nos evangelhos chama tanto a atenção: Jesus jamais se refere a ela como “mãe” . Ao longo dos evangelhos canônicos, em momentos decisivos – como o milagre inaugural em Caná (Jo 2), o episódio no templo (Lc 2), o momento na cruz (Jo 19) e os encontros com seus familiares durante a pregação (Mt 12, Mc 3, Lc 8) – Jesus evita o uso do termo “mãe” , dirigindo-se a Maria com o título de “mulher” ou mesmo sem qualquer identificação afetiva explícita. Isso pode soar, à primeira vista, como frieza, distanciamento ou até desdém. Mas a ausência do vocativo “mãe” é um recurso teológico e simbólico muito mais profundo, cuja análise exige cuid...

Entre a Gnose e a Cruz: a tensão entre o cristianismo moderno e o Cristo encarnado

Uma crítica fenomenológica, histórica e teológica ao gnosticismo infiltrado na fé cristã

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Quando o Gnosticismo Entra pela Porta da Frente (sem ser notado) É recorrente, nos púlpitos, músicas e discursos devocionais protestantes, ouvir afirmações como: “este mundo não é o nosso lar”; “o corpo é apenas um invólucro passageiro”; “a alma é eterna, o corpo é terreno”; ou ainda “a igreja verdadeira é invisível, espiritual”. Tais ideias, amplamente aceitas como verdades do cristianismo, especialmente em sua vertente evangélica ou pentecostal, não são, contudo, oriundas do cânone bíblico em sua matriz hebraica. Elas ressoam, com notável precisão, os princípios fundamentais do pensamento gnóstico e suas matrizes filosófico-religiosas persas e helênicas. Conforme aponta Elaine Pagels , a estrutura gnóstica básica envolve uma rejeição do mundo físico, entendido como prisão para a centelha divina da alma, e uma ênfase na salvação por meio do conhecimento oculto ( gnosis ) — algo radicalmente distinto da visão relacional e histórica da salvação nas tradições juda...

Os Quatro Cavaleiros da Crítica Moderna: A Teologia à Sombra de Feuerbach, Nietzsche, Darwin e Freud

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Deus nas lacunas: uma crítica teológica a partir dos quatro cavaleiros do apocalipse moderno Introdução “Deus é o nome para a resposta mais cômoda diante do que ainda não se compreende.” Essa fórmula, reproduzida em variadas versões ao longo dos séculos, representa uma tentação constante: a de acomodar a divindade nos interstícios do não explicado. À medida que o conhecimento científico avança, a fé é empurrada, cada vez mais, para as fronteiras do inexplicável — até que reste a ela apenas um refúgio nas lacunas. O problema, porém, é teológico: um Deus que habita apenas o hiato da ignorância corre o risco de se tornar menor a cada avanço da ciência. Essa concepção reducionista é não só insuficiente como perigosa, pois transforma a experiência da fé num sistema de compensações cognitivas, e não num engajamento com o real. Este ensaio propõe uma crítica teológica à ideia do “Deus das lacunas”, tomando como ponto de partida quatro autores que, durante minha...